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Ti R. THEOPHILO DO INSTITUTE HISTORIC GEOGRAPHIC BRASILEIRO A SECCA 1915 IMPRENSA INGLEZA Rua Camerino, 61-65 Rio de Janeiro 1922 LATIN AMERICAN COLLECTION UNIVERSITY OF FLORIDA Gift of Ralph Della Cav BIBLIOGRAPHIA Rodolpho Marcos Theophilo Rodolpho Marcos Theophilo., filho legiti- mo do Dr. Marcos Jos6 Theophilo, medico, e D. Antonia Josephina Sarmento Theophilo, nasceu no Ceard, no dia 6 de maio de 1853. Baptisou-se no dia 1 de outubro do mesmo anno, na igreja do Rosario, em Fortaleza. Fez o curso de humanidades no "Atheneu Cea- rense", onde se matriculou em 1865. Em 1864, perdeu seu pai, ficando em ex- trema pobreza. Esteve no "Atheneu Cearen- se", tres annos, de onde sahiu para se em- pregar no comrmercio, na casa de seus paren- tes Albano & Irmdo, ndo continuando os seus estudos a falta de recursos. No primeiro anno de collegio, correram as despezas por conta de seu tio e padrinho, Jose Antonio da Costa e Silva. Findo o anno lectivo e tendo Rodolpho Theophilo feito gran- de progress, obtendo approvagdo com dis- tinccao em primeiras lettras, quizeram os seus II BIBLIOG(RAPHIA ~~VV1'AIV/X VX V\ XVVI MVW IWAA'IAA V VtVVW VW W'V.AA WA IAV"," parents que deixasse o collegio e se empre- gasse no commercio. A isto se oppoz o di- rector do "Atheneu", allegando as optimas aptid6es da crianca e se offerecendo para tel-a no collegio, independent de qualquer retribuigao. Rodolpho continuou no "Atheneu" at6 de- zembro de 1867, de onde sahiu para o com- mercio. Ahi esteve ate novembro de 1872 a soffrer todas as contrariedades em um ramo de actividade humana para o qual elle nao tinha vocacgo. Nesse tempo o caixeiro nao era mais do que um criado de servir. Quao grandes foram as suas revoltas contra as hu- milhag6es que Ihe reservara a sorte. 0 cai- xeiro era um escravo. Nem ao menos tinha o direito de agremiago. E tanto que se lem- braram de organisar uma sociedade caixeiral de beneficencia e os patroes nao consentiram que levassem a effeito; e a id6a morreu ao nascer. Rodolpho revoltava-se contra o jugo, mas o que fazer? Comprehendeu que s6 o livro podia libertal-o e nao perdia tempo. A's 8 ho- ras da noite, quando o commercio se fechava, 16 ia a uma aula nocturna de preparatorios, no collegio dos Drs. Arcelino Queiroz e Praxedes. Preparava-se para cursar uma das nossas academias, mas como, si nao tinha re- cursos? A esse tempo, nem os exames de pre- paratorios se podiam aqui fazer. Eram feitos s6mente onde havia academia. R. THEOPHILO ]]I A profissdo que mais apetecia era a de medico. Seu pai e um avo o haviam sido. Esse curso era long e talvez nao pudesse vencel-o. Assim, contentou-se corn o curso de pharmacia. Mesmo assim, corn que meios sa- hiria para uma terra estranha? Estava prom- pto para seguir, mas faltava-lhe o essencial. Cinco annos no commercio nao lhe deram para economies; os ordenados foram pessi- mos. 0 pequeno saldo que tinha na casa mal lhe daria para a passage ate o Recife, onde pretendia fazer os preparatorios. Estava sem esperanga de ir estudar, quan- do appareceu o seu bom anjo na pessoa de seu grande e devotado amigo Henrique Gon- calves da Justa. Trabalhava a Assembl6a Provincial e Jus- ta obteve desta uma subvencgo de quinhen- tos mil r6is annuaes para Rodolpho Theophilo estudar pharmacia, emprestimo que deveria pagar depois de formado. 0 emprestimo s6 teria logar depois de matriculado no curso de pharmacia. Rodolpho embarcou para Recife em no- vembro de 1872, onde tinha de permanecer atW marco do anno seguinte, afim de fazer os preparatorios. Os recursos de que dispunha nao davam para sua manutencgo naquella capital ate marco. Assim procurou obter uma collocagao que lhe d6sse meios de viver alli. Obteve-a no Hospital Militar, sendo nomeado amanu- IV BIBLIOGRAPHIA ense, logar que occupou at6 seguir para Ba- hia. Concluidos os preparatorios para o curso de pharmacia, embarcou para Bahia, em cuja Faculdade de Medicina se matriculou. No segundo anno do curso, a assembl6a, por esquecimento, deixou de consignar no or- camento verba para as mezadas de Rodolpho, que se achava no Cear6, passando as ferias. A mezada de quarenta mil r6is mensaes, que Ihe dava o Ceara, era insufficient para sua manutencgo; como continuaria elle o curso, privado della? Abandonar os estudos no meio do cami- nho ndo era para aquelle espirito forte. Rodolpho regressou A Bahia. Ahi che- gando procurou a sua republican" na rua dos Barris. Encontrou os tres companheiros que havia deixado, cada qual corn melhor saude e mais pobre. Receberam-no corn o maior affect. Con- tou-lhes ent6o Rodolpho a sua situac6o. Esta nada influira no espirito daquelles mogos para deixarem de dar ao college, que voltava mais pobre do que f6ra, um logar A mesa delles. No correr da conversa sobre os aconte- cimentos que se tinham dado na ausencia de Rodolpho, fallaram em um concurso para dous logares de alumnos pensionistas A phar- macia do Hospital Militar, logares estes que deviam ser occupados por alumnos do segun- do anno do curso de pharmacia. R. THEOPHILO V Aquella nova foi um clardo que illumi- nou o caminho em que seguia Rodolpho. Indagou dos colleges si elles nao se ha- viam inscripto para o concurso. Responde- ram,-lhe que nao, que eram muitos os candi- datos para dous logares e cada qual corn mais proteccao. Rodolpho Ihes exprobou a fraqueza, admi- rando-se de que desprezassem aquelle meio de melhorar as financas delles. O concurso estava marcado para dahi a 15 dias e as inscripg5es se fechavam no dia seguinte, conforme o edital publicado na im- prensa. Rodolpho neste mesmo dia foi a delega- cia do cirurgido-m6r do exercito para inscre- ver-se. O delegado o recebeu bastante aborreci- do, perguntando se queria ir a concurso toda a Academia, que jA se achavam inscriptos seis estudantes para dous logares. Emfim que Rodolpho voltasse no dia seguinte corn cer- tiddo de ser alumno do segundo anno do curso de pharmacia, para ser inspeccionado de saude. Inscripto, entrou em concurso dahi a 15 dias, obtendo ser approvado corn distincco, tal a excellencia de sua prova escripta. Um mez depois do concurso era nomeado pelo ministry da guerra alumno pensionista da pharmacia do Hospital Militar da Bahia, corn um ordenado de 800$000 annuaes, logar que V 1 BIBIIOGRAPHIA exerceu ate o dia 20 de dezembro de 1875,_ dia em que recebeu o diploma de pharma- ceutico. Nao tendo querido entrar para o corpo de saude do exercito, como fez seu college de hospital, pharmaceutico Norberto da Silva Ferraz, que morreu no posto de coronel, vol- tou ao Ceara em 1876. Estando bastante enfraquecido, resolve passar uma temporada em Pacatuba, villa no campo, para se fortalecer. Ahi esteve com uma pequena pharmacia at6 comego de 1877, vindo para Fortaleza, onde abriu uma phar- macia na rua Major Facundo, antiga rua da Palma, n. 80, pharmacia que passou a Gon- zaga e depois a Affonso Pontes. 0 anno de 1877 iniciou a grande secca, que se prolongou atW comego de 1880. Neste long period de afflicc6es, Rodolpho Theo- philo prestou a sua terra os melhores servi- cos. Acabada a secca do Ceard recolhia os or- phdos do terrivel flagello na Colonia Christi- na, para educal-os. Para auxiliar o governor em suas despezas, Rodolpho Theophilo of- fereceu 6quelle orphelinato, de mais de cem orphdos, medicamentos durante um anno. Nesta dadiva s6mente pagava ao Cear6 a pe- quena somma que este Ihe adeantara para es- tudar. Depois da secca appareceu uma piraga de cobra cascavel no sertdo. R. THEOPHILO VII A esse tempo o Dr. Lacerda publicava observag6es feitas corn o permanganato de potassa contra o veneno ophidico. No interior do Ceara contavam-se por dezenas de victims daquelle ophidio. Rodol- pho Theophilo nao ficou indifferent ao novo flagello que seguiu ao da secca. Obteve uma cobra de cascavel e, depois de repetidas ex- periencias, chegou ao conhecimento de que o permanganato de potassio nao 6 antidote do ophidio, mas, applicado logo ap6s a inocu- lacdo deste, o neutralisa, isto em animaes que nao sejam pequenos, como preds,.etc. Em pe- quenos roedores o insuccesso era complete. Cobaias pr6viamente injectadas corn solucao de permanganato de potassio eram picadas e morriam minutes depois. 0 permanganato nao era um antidoto do veneno ophidico, mas, applicado em seguida A inoculacdo da pegonha da cobra, salva o animal da morte. Nesse tempo nada se co- nhecia melhor: as experiencias de Calmette nao estavam feitas, nem tampouco o serum de Brasil. Em falta de outro meio de salva- cao para os infelizes sertanejos, Rodolpho Theophilo distribuiu aos 85 municipios, tan- tos eram os do CearA naquelle tempo, appa- relhos de Pravaz, corn solugdo de permanga- nato de potassio e -um directorio,, ensinando a applicago do medicamento, etc., etc. Tempos depois, de todos os municipios chegava communicacgo de vidas salvas corn VIII BIBLIOGRAPHIA o remedio que Rodolpho Theophilo exponta- nea e generosamente offerecera aos seus pa- tricios do interior da provincia. Rodolpho Theophilo casara-se em 24 de maio de 1879 com D. Raymunda Cabral de Mello, filha do agricultor portuguez Antonio Cabral de Mello e de D. Henriqueta Hermina Cabral, tambem portugueza. Em 1883 publicou elle o seu primeiro li- vro "Historia da Secca do Ceara" 1877 a 1880. Um volume de mais de 500 paginas, illustrado com gravuras de famintos e plants por elles usadas, para escapar A fome. Este livro foi muito bem recebido e deu-lhe entra- da no Instituto Historico e Geographico Bra- sileiro, do Rio de Janeiro, a mais antiga so- ciedade de lettras do Brasil. No Ceara iniciava-se a campanha contra o element servil. Em dias de 1882, na praga Jos6 de Alencar, conversavam em um hotel,. tomando cerveja, Pedro Arthur de Vascon- cellos e Soares Carneviva, empregados do commercio, quando passou uma leva de es- cravos em rumo do porto. Ia embarcar. Pedro Arthur protestou con- tra aquella deshumanidade, aquelle crime em pleno seculo XIX, o commercio de care hu- mana. Esta infamia, dizia elle, devia acabar. Na noite desse dia, Pedro Arthur, em uma reunido da sociedade de empregado's do com- mercio "Perseveranca e Porvir", mostrou a sua indignagco contra a venda de homes e. R. THEOPHILO IX mulheres e propoz que fosse creada uma so- ciedade corn o fim de abolir o element ser- vil. Esta id6a no moment era uma utonia. Partir do Ceara, um Estado pequeno, pobre, sem representacgo, o grito de morte ao ca- ptiveiro era o cumulo da audacia. A mocida- de cearense nao pensou nisto e fundou a So- ciedade Cearense Libertadora. A lucta travou-se. 0 governor, por sua vez, poz-se em campo para sustentar aquella ins- tituigeo, que embora fosse uma n6doa de la- ma no pavilhAo national, devia ser garantida como propriedade que era. Rodolpho Theophilo nao podia ser indif- ferente ao movimento libertador e alistou-se nas hostes que combatiam a escraviddo. A generosa idea espalhou-se pelo Ceard inteiro. A causa tornou-se de todos. A victo- ria seria certa. 0 governor agia, mas agia sem enthusiasm. Os libertadores combatiam o element servil por todos os modos. Foram heroes, foram abnegados. A Rodolpho Theophilo coube a tarefa de promover a emancipacio dos escravos em Pa- catuba, onde a political local estava estorvan- do o movimento. Para la seguiu corn sua mu- Iher, que ,to abolicionista quanto elle, havia tambem se alistado em uma sociedade de se- nhoras libertadoras. No aia 10 de Janeiro de 1883 recebia o captiveiro no Ceara o primeiro golpe corn a libertacAo do municipio do Acarape. Aquelle A BIBLIOGRAPHIA pedago de patria nio tinha mais um home escravo! Seguiu-se a liberta co de Pacatuba, no dia 2 de fevereiro de 1883, depois de uma lucta de mais de um mez, lucta que Rodol- pho Theophilo teve de sustentar corn muita coragem e gastando parte de suas economies. Para compensal-os de tanto trabalho, de tan- tos aborrecimentos, receberam elle e sua mu- lher, no dia da emancipacdo da Villa, as maio- res provas de estima e reconhecimento. No dia 24 de maio de 1883, Fortaleza li- bertava os seus escravos entire risos e flores; A alegria enchia todos os lares. A alma do cearense vibrava de contentamento. A' noite a mais pobre choupana das areas illuminou a sua humilde fachada. A Cearense libertadora marchava de vi- ctoria em victoria. Joao Cordeiro, Jos6 do Amaral, Frederi- co Borges, Isac Amaral, Joao Carlos Jata- hy, Francisco do Nascimento, Antonio Be- zerra, Siqueira Mano, Alfredo Salgado, Jose Albano Filho e outros chegaram cobertos de louros ao termo da sua jornada no dia 25 de marco de 1884, dia em que disseram a patria: Pela vontade soberana do povo acabou-se o element servil no CearA! Finda a campanha da aboligdo, voltou Rodolpho Theophilo ao labor litterario. S. M. o imperador o havia condecorado corn o Officialato da Rosa, em recompensa P. THROPHILO XI dos services por elle prestados A humanida- de, como se nao estivesse elle bem recom- pensado pela consciencia da pratica do bem. Em 1888 publicava Rodolpho a "Mono- graphia da Mucuna", esta plant celebre que ajuda a matar a fome das grandes seccas. A variedade que os famintos usavam nAo era conhecida. Rodolpho Theophilo estudou-a e classificou-a de "Mucuna Glabra" R. T. Este trabalho foi muito bem recebido pe- la imprensa do Rio e despertou tanto interesse que foi publicado no "Diario Official" e o-mi- nistro da Agricultura pediu a fecula da mu- cund, tal como os famintos a usavam, para mandar examinal-a. 0 exame foi confiado ao professor Michler, que chegou ao conheci- mento de que as desordens organicas produ- zidas pela fecula da mucund eram devidas ao acido gallico contido nella. 0 sr. CaminhoA em sessdo da Imperial Academia de Medicina, occupou-se largamen- te da "Monographia da Mucund",pedindo que se requisitassem ao president do CearA exemplares da plant para serem estudados". Em 1890 publicava Rodolpho Theophilo o seu primeiro romance a "Fome", episodios da terrivel secca de 1877. Este livro, que o seu autor considerava defeituoso pelas divagac6es scientificas, foi bem recebido e tanto que Medeiros e Albu- querque referindo-se a elle, assim se expri- me: "Mas onde nos seus livros vale mais a All BIBLIOGRAPHIA pena ler-se uma descripcqo dessa calamidade- 6 no romance a "Fome". Este romance tern o mesmo nome de uma obra celebre de um cer- to escriptor scandinavo, Knut Hanson. Si, po- r6m, 6 mais incorrect e, por assim dizer, tu- multuoso, tern a superioridade de ser mais verdadeiro. Knut Hanson, talvez, nunca ti- vesse de facto sentido sentido ao menos de um modo intenso, por dias, mezes e annos, o que elle pretendia descrever. A Rodolpho Theophilo ndo faltaram, infelizmente, os mo- delos. Por isso o seu livro 6 vivido. Sente-se que 6 verdadeiro. E' a fome de um povo in- teiro, a fome com todo o seu cortejo de mise- rias". Clovis Bevilaqua, apreciando a "Fome", assim terminal o seu juizo: "Para dizer tudo em poucas palavras: 6 a epop6a lugubre, a pavorosa tragedia da secca levanta-se do li- vro de Rodolpho Theophilo, esbraseada, lutu- lenta, andrajosa, revolvendo a vasa immun- da dos mdos instinctos recalcados pela civi- lizaqgo, enlameando a d6r no esterquilinio da crapula, rindo mephistophelicamente em face do desespero, mas de long em long illumi- nada por um acto nobre, por um character de- fina tempera, por um rasgo de philantropia. Qual foi na realidade, tal estA no livro". Ainda em 1890, publicava Rodolpho Theophilo um livro didactico "Sciencias Naturaes, em contos" que foi adoptado pa- ra uso das escolas no Ceard e tempos depois. R. THEOPHILO XIII era unanimemente approvado pelo Conselho Superior de Instruccdo Publica de S. Paulo e mandado adoptar em suas escolas. O professor Ayres de Albuquerque Ga- ma, depois de uma longa apreciago sobre aquelle livro, assim terminal o seu artigo: "0 autor conclue o seu trabalho com cinco capi- tulos, de XX a XXIV, descrevendo detida- mente tres funce6es da vida animal, nutri- cao, circulagio e respirago, concluindo estas nog6es physiologicas com descripg6es e por- menores, curiosissimos do orgdo visual e da respective funccao de relacdo, que exerce". Neste meismo anno publicou Rodolpho Theophilo outro livro didactico Botanica elementary. Este compendio foi adoptado na Escola Normal, sendo mais tarde ampliado pelo dr. Garcia Redondo e adoptado na Esco- la Polytechnica de S. Paulo. O movimento litterario accentuava-se fundando-se a "Padaria Espiritual", da qual Rodolpho Theophilo foi padeiro-m6r, presi- dente. Esta sociedade, incontestavelmente, prestou grandes services As lettras patrias. Ti- nha uma revista "0 Pdo" que publica- va os escriptos de seus associados. Esta agre- miacdo contava bellos talents, como Antonio Salles, Arthur Theophilo, Sabino Baptista, Antonio Bezerra, Lopes Filho, Waldemiro Cavalcante, Jos6 Carlos Junior, Cabral de Alencar, Antonio de Castro e outros. XIV BIBLIOGRAPHIC 1A'V1 WVWl/1/ XA1 Wl VVV,"N1"AAA'WVV1A1 N"1 AA I.WAAAAl/VlV V1, Em 1895 publicou Rodolpho Theophilo o segundo romance "Os Brilhantes" que foi muito bem recebido pela critical. Diversos escriptores se occuparam delle corn os juizos os mais lisonjeiros. Pedro de Queiroz, apreciando o livro diz: "Rodolpho Theophilo nao tem a geniali- dade creadora, a poderosa psychologia dos mestres, a inconfundibilidade que particulari- za o grande artist, na natureza vibratil, se- nhor da technical do officio, alliando a capa- cidade de brilhante intellectual a impressio- nabilidade do artist, na sua retina moral re- trata bellissimas paizagens, desenha a nota caracteristica a um quadro e a golfa no li- vro. Rodolpho Theophilo nao se altera dean- te de um acto de crueza. Descreve-o tranquil- lamente, as vezes com colorido vivo, quente, como as entranhas das victims do sacrificio dos antigos". Araripe Junior, em estudo sobre "Os Brilhantes" publicado na "Provincia do Pa- ra", diz isto: "Nao se p6de dizer que a Ro- dolpho Theophilo escapassem as situag6es in- dispensaveis a boa march da historic de Jesuino Brilhante. Ao contrario disso o es- queleto do romance 6 complete e nada Ihe falta no que diz respeito ao conflict indis- pensavel ao desenvolvimento da sanha e da queda do assassino". R. THEOPHILO XV Jos6 Verissimo, occupando-se deste li- vro, escreve: "Do que tern curioso e interes- sante a vida cearense que o sr. Rodolpho Theophilo parece conhecer tdo bem e que pinta com tanto sentiment e verdade, mes- mo com intensidade, como em certas paginas dos "Brilhantes". Valentim de Magalhdes publicou na "Noticia" um estudo sobre os "Brilhantes", na qual diz isto: Rodolpho Theophilo tern accentuada e robusta vocaco para o roman- ce, genero de que nao temos abundancia. Sa- b3 preparar e conduzir a intriga, distribuir e destacar os episodios principles, desenhar e fazer viver os seus typos, communicar ao lei- tor a impressed do meio e da emoco das si- tuacoes. E' um romancista emfim". Arthur Azevedo, apreciando os "Bri- Ihantes", diz: "Poucas vezes se tera visto uma voca- cao de romancista rebentar com tanta impe- tuosidade e florejar com tanta exhuberancia. Nas quatrocentas e tantas paginas d'"Os Brilhantes" o leitor encontrard situacoes ha- bilmente preparadas, caracteres e persona- gens bem definidos e bem contornados, des- cripc6es muito suggestivas, dialogos susten- tados com talent e com interesse dramatic intenso, que se nao desmente desde o primei- ro at6 o ultimo capitulo. Demais o livro 6 nosso, muito nosso: passa-se nos sert6es do X VI BIBLIOGRAPHIA norte e nao soffreu a influencia de nenhum romance estrangeiro". Garcia Redondo, apreciando "Os Bri- lhantes", escreve: "'Os Brilhantes", romance editado pela "Padaria Espiritual", que tantos e tao bons livros nos tern dado, faz honra a esta littera- tura do norte, que reapparece pujante de ta- lento e originalidade ap6s a proclamacdo da Republica. Conhecedor profundo de sua ter- ra natal, Rodolpho Theophilo descreve-nos as ridentes paysagens do Ceara e faz-nos convi- ver com o seu povo, cuja linguagem 6 tao di- versa da nossa pela sua technical especial e typical. Ler este livro 6 viver durante algu- mas horas num meio estranho, que nos seduz e encanta pelas suas maravilhas na natureza e pelo aspect inteiramente novo do home e de seus habitos. Rodolpho Theophilo, como narrador, tem o condo de prender o leitor, obrigando-o a ler os seus livros de um folego, sem descango, tao seductores sAo elles". Em 1897 publicava Rodolpho Theophilo o seu terceiro romance "Maria Ritta", que mereceu da critical os mesmos applausos que "Os Brilhantes". Coelho Netto, apreciando este livro, as- sim se manifesta: "Li de um folego o novo romance de Ro- dolpho Theophilo, o infatigavel padeiro-m6r da Padaria Espiritual do Ceara, "Maria Rit- R. THEOPHILO XVII ta" 6 o titulo. A accao do romance remonta- se aos velhos tempos do CearA colonial. Rodolpho Theophilo 6 um escrupuloso observador e disso jA deu provas sobejas na "Fome" e nos "Brilhantes". Conhecendo profundamente o sertdo, os seus livros t6m .um encanto novo, ddo, por vezes, uma im- pressdo do maravilhoso, principalmente aos que nunca tendo passado a fronteira da cida- de, nada conhecem dessa vida forte que le- vam os homes simples em plena natureza corn o seu gado e com Deus, felizes na singe- leza dos campos verdes ou na grandiosa ma- gestade das florestas virgens". Theotonio Freire assim se exprime sobre "Maria Ritta": "Rodolpho Theophilo, o operoso home de lettras cearenses, autor da "Fome", d'"Os Brilhantes" e outras obras, publicou ultima- mente o seu terceiro romance "Maria Ritta", um estudo da sociedade cearense no tempo colonial. Rodolpho Theophilo nao 6 um Zola, nem Daudet, nem D'Annunzio, mas tambem nao 6 ahi qualquer escriptor da estatura de Montepin e le reste. 0 mopo romancista tem talent e boa vontade. 0 que noto nelle 6 uma qualidade de observador que nao analysa; apanha o facto e mostra-o sem desdobral-o, sem pers- crutal-o em um rigoroso estudo que faca re- saltar as cousas e os acontecimentos, os ho- mens e as paix6es, animadas, verdadeiras. XVIII BIBLIOGRAPHIA 4VV1VVV1AV1VWVVV v,1AAH'VVi AVl4lV^ LVVl l'\'iAT1AA1'WLA Tern a intuigdo e mais do que isto o conhe- cimento exacto daquillo sobre que escreve,. mas falta a sua obra o sopro vivificador de um espirito superior presidindo a sua elabo- raco". Medeiros e Albuquerque assim conclue a sua minuciosa apreciacdo sobre "Maria Rit- ta". "Para concluir: "Maria Ritta" 6 um dos raros "specimens" do romance national, re- almente national. Tern uma accao bem tra- vada, interessante, cortada de episodios com- movedores. Quem o tomar para ler ndo se deter um moment sem attenceo antes de chegar ao desfecho. Rodolpho Theophilo se quizer trabalhar um pouco occupar6 dentro em breve na nos- sa literature um logar que bem poucos Ihe disputardo". Arthunio Vieira, em long artigo sobre "Maria Ritta" publicado no journal "Pard", de Belem, diz: "Entretanto de parte alguns senses, que belleza encerra "Maria Ritta"! Quanta ver- dade vag na descripcAo da farinhada! Que vividas c8res revestem as paysagens e como estruge sobre as cabegas do Joaquim e da Maria a tempestade que encheu o Aracaty- Assu' Corn que purezas de linhas, corn que. finura de colorido Rodolpho Theophilo des- creve o amanhecer do sertdo!" R. THEOPHILO XIX Na critical que Arthur Theophilo faz de "Maria Ritta" la-se o seguinte: "0 romance do sr. Rodolpho Theophilo, como disse, inicia corn brilhantismo a propa- ganda do nacionalismo. Ha no livro scenas que sio nossas do nos- so povo, como a farinhada, o pombal, a corrida do vaqueiro e at6 mesmo o defuma- dor. No conjuncto, o romance tern vida, buli- cio, movimentacdo coordenada e forte, e, du- rante a narracao, descobrem-se creatures que estamos acostumados a ver diariamente vi- vendo, agindo, movendo-se emfim no enge- nhoso enredo do livro, numa feliz e natural disposicdo. 0 estylo do autor mesmo, descu- rando sob o ponto de vista do purissimo classic, 6 um bello specimen da nossa lin- guagem, do nosso argot, que o autor nao es- tudou, por certo, mas que sabe transportar para o papel, corn habilidade de mestre, sem parti pris, naturalmente. No romance do es- criptor cearense nao ha artificio; a narracao corre espontaneamente, cheia de intense ins- piragdo, cortada de peripecias locaes, sugges- tiva e attrahente, a ponto de arrastar ate A ultima pagina, irresistivelmente, a curiosida- de do leitor". Clovis Bevilaqua assim se exprime sobre "Maria Ritta": E' um livro cearense, pelos costumes que descreve, pelas id6as que Ihe tecem o trama, pelos aspects da natureza que refle- XX BIBLIOGRAPHIA cte. Portanto, 6 um livro genuinamente brasi- leiro, seja dito para o elogio de quem o es- creveu. Infelizmente se Ihe p6dem apontar defeitos... e eu os nao quizera ver, e muito menos apontar no livro de Rodolpho Theophi- lo, livro que se conclude ter sido trabalhado corn amor e com muito estudo. Mas, preoccu- pando-se extremamente corn os quadros, com os detalhes da enscenacao, onde se mostra um frio observador, o romancista cearense esqueceu-se de dar maior vida a accao, que corre um tanto feia e morosa". Eduardo Prado publicou na "Revista Moderna", que se public em Paris sob a direcgao de Ega de Queiroz e M. Botelho, uma apreciagao sobre "Maria Ritta", em que se 1I: "Si o sr. Rodolpho Theophilo conseguis- se esquecer o que tem lido e s6 contasse es- pontaneamente e corn singeleza o que tao bem sabe ver no sertdo, o seu livro teria uma belleza propria e original, um tanto ingenua e rude, mas 6 tao bello o quadro e tao estra- nhos sao os personagens que poderia caber ao autor, entire os brasileiros, o logar que en- tre os norte-americanos tem Bret Harte". Em 1898 publicava Rodolpho Theophilo a sua novella "ViolaAo" considerada a sua obra prima. 0 grande Fialho de Almeida referindo- se a ella diz uma das melhores novellas escriptas em lingua portugueza. R. THEOPHILO XXI Medeiros e Albuquerque a julga as- sim: "Violacdo 6 um conto de poucas pagi- nas. Tern a assignal-o o nome de Rodolpho Theophilo, o escriptor da "Fome", de "Ma- ria Ritta", d'"Os Brilhantes". Ha na descri- pgao dessa tristee scena de bruteza humana" os caracteristicos de sua imaginagco, volta- da de preferencia as scenas horriveis e vio- lentas. Horriveis e violentas, mas bem escri- ptas, num estylo aspero por6m vibrant, que nos da a sensacdo de cousas reaes, de cousas vistas, sentidas, vividas. E' um bello conto". Herculano da Fonseca escreve na "Mala da Europa", revista que se public em Lis- boa, o seguinte: "NAo 6 um trabalho de folego este, mas podia sel-o si, em vez do conto que este vo- lume encerra, fosse um romance para que em muitos pontos se nos afigura esbocado desde o comeco o seu entrecho. 0 tom de narrative simples em que por fim, resolve preferentemente retocal-o - que 6 evidence isso restringe-1he muito o, merito com que no trago psychologico das fi- guras se deixa levar do louvavel empenho de as pormenorizar inteiramente sem o recurso do dialogo. Comtudo a originalidade do as- sumpto que envolve um symbolismo em que os personagens surgem representando um su- premo ideal da Arte compensa em grande parte a inapropriacdo da forma empregada: e a linguagem correct e simples que delica- damente borda das subtilezas do entrecho, essa entdo dA-nos a media exacta da con- sciencia esthetica do escriptor, que sabe uti- lizar commedidamente a belleza plastic de seu idioma". Pedro de Queiroz, apreciando a "Viola- cao", escreve: "0 intelligence novellista conta o seu caso de psycopatia, mas sem cuidar de suas raizes, que nao cavou. As scenas cruas da natureza e do mundo social sao o ambiente onde o autor da "Violacdo" respira a longos haustos. Na sua palheta tem pouco relevo as scenas de inspiracgo suave, serena, riso- nha. Predominam as paysagens carregadas, os quadros tristes. E' elle o maguado pintor dos paineis das seccas". Em 1899 publicava o "Paroara", roman- ce que foi muito bem recebido. Farias Brito, o philosophy da "Finalida- de do Mundo", fazendo um estudo sobre "0 Paroara", assim conclue: "E' talvez o livro mais tragico e expres- sivo de Rodolpho Theophilo; mas tambem por isso mesmo o mais verdadeiro e emocio- nante. Ali reflecte-se inteiramente a alma do romancista. Alguma cousa de seu character ficou impressa no livro. Dahi a originalidade do mesmo, sendo que de todos os romances nacionaes sao os de Rodolpho Theophilo os que menos obedecem a qualquer suggested XXII BIBLTOGR APTTTA R. THEOPHILO XXIII extranha; e, de todos os romances de Rodol- pho Theophilo, 6 o mais original e complete. Tambem Rodolpho Theophilo 6 o typo unico no meio em que vive. Ninguem mais accessivel a amizade; ninguem mais brando e bondoso. De uma vez vi-o dev6ras irritado porque alguem ria-se de uma louca. Entendia elle que nao havia ia- zao para galhofa, sinao para compaixao e respeito. Corn os amigos nao 6 s6mente ami- go, 6 pae ou irmao. Soffre por qualquer cou- sa mais do que qualquer outro. Triste sem- pre, parece que tern a alma como que invaria- velmente voltada para dentro de si mesmo. S6 o olhar reflect alguma cousa do que se passa la dentro. Corn qualidades que o tornam a creature mais sociavel do mundo, parece, entretanto, que um quer que seja de extra- nho o isola. Nas festas procurae-o sempre num canto a esconder-se, arrastado como um reclu- so pela tortura do proprio pensamento. Nas reunites, em sua propria casa, deixa que tu- do corra por conta de sua magnanima espo- sa, feliz por ter encontrado quem tao bem sabe comprehendel-o e complefl-o. Quanto a si nao rompe com o que chama meus habi- tos mas que nao 6 senao o poder de tempe- ramento. Continua a meditar nos seus ideaes predilectos e mesmo quando fala ou Ihe falam, ha uma especie de desdobramento de sua per- sonalidade: responded a todos, discute corn to- XXIV BIBLIOGRAP1-IA dos e parece que em tudo toma parte; mas, de facto, continfla de todo extranho ao que se passa, isolado no seu ideal. Magro, dispeptico, parece que o corpo 6 alli apenas uma sombra do corpo e em verdade ha s6mente alma e sen- timento. Tal 6 o autor d'"O Paroara", o mais original de todos os romancistas brasileiros. 0 character e genio mesmo do autor, que se refle- ctem na originalidade do livro". A critical indigena havia se occupado lar- gamente da individualidade litteraria de Ro- dolpho Theophilo, quando Oliveira Lima, nos- so ministry na Belgica, traduziu para o fran- cez algumas paginas d'"O Paroara" e as publi- cou na "Revue d'Europe et Am6rique". As paginas publicadas eram as mais in- tensas do livro. Nellas estavam photographa- -das scenas da vida amazonica e da vida cea- rense. Andr6 Beaunier, lendo-as, achou-as inte- ressantes e publicou no "Figaro" as impres- s6es que Ihe deixaram a leitura dellas. Eis al- guns topicos de sua apreciagao: "- Un romancier br6silien M. Olivei- ra Lima, dans la "Revue d'Europe et Am6ri- que r6v6le un romancier br6silien don't 1'oeu- vre semble fort singuli6re et attrayante. M. Rodolpho Theophilo. M. Oliveira Lima note d'ailleurs qu'elle n'est pas raffin6e: elle vaut par un charme original. R. THEOPHILO XXV VAV"VVAVVA VVVV VAVIVVIVVVVWV V VVVVVVMVVV'%, Ces paysages sont empruntees a un ro- man qui s'appelle "0 Paroara". Le "Pa- roara" c'est le cearense qui est all en Ama- zonie et qui revient dans son pays natal, riche,, mais la rate engorgee le teint jaune, le corps grelottant, les jambes fl6chisantes". Les deux existences qui doit successive- ment mener ce colon, M. Rodolpho Theo- philo les a mises en contrast avec beaucoup d'6clat. Pour representer la vie au Ceard, voici, 1A-bas, la messe de minuit, Noel en plein 6t6:: L'autcl sur lequel on allait ctlebrcr le saint sa- crifice avait 6t6 placid en dehors do l'eglise, facc au porche, etc. etc. M. Oliveira Lima, note que M. Rodolpho Theophilo n'est pas un ecrivain trcs attentif: le style est souvent incorrect et les descriptions no sont pas d'un artiste. Elles sont extr6mement belles, pourtant si 1'on juge par les passages qu'on cite et- bien que la traduction semble imparfaite. Cette page-ci n'est elle pas strange et ad- mirable? Nous sommes dans un coin de 1'Amazo- nie: Pedro das Marrecas et Jacy avaient ren- contr6 une grande ile form6e par la crue et qui regorgeait de gibier. C'6tait une veritable arche de No6, etc., etc. Apr6s cela, souhaitons que bient6t on nous donne la traduction complete du "Paroa-- ra". XXVI B'BLIOGRAPHIA Em 1901 publicou Rodolpho Theophilo o seu livro "Seccas do Ceara" Segunda Metade do Seculo XIX. Este livro foi bem aco- Ihido, como os que o precederam. Antonio Salles diz sobre este livro o se- guinte: "Temos o seu recent livro "Seccas do Ceara" em que o autor estuda estes phe- nomenos na segunda metade do seculo XIX, especialmente as ultimas seccas de 1888, 1889 e 1900. E' um livro de observacgo e de critical aos actos dos poderes publicos corn relacgo ao flagello". Este livro de verdades, em que era condemnada a indifferenca criminosa do actual president do Ceara, commendador No- gueira Accioly, ante o flagello que victimava a populacgo do Estado, fez este president inimigo de Rodolpho Theophilo, a quem mo- veu perseguig6es. Em 1900 estava Rodolpho Theophilo a passeio na capital da Bahia, quando o CearA era assolado por uma secca e corn ella uma epidemia de variola que fazia grande estrago ndo s6 em Fortaleza como no sertdo. As noticias que recebia de sua terra eram as mais desoladoras possiveis. A peste fazia mais victims do que a fome. A capital tinha ares de cidade morta. Os bexigosos apodre- ciam em redes armadas nas arvores das pra- cas. Rodolpho Theophilo sentiu deveras a des- grapa que pesava sobre o Ceara. Testemunha ocular da secca de 1877 e da grande epidemic R. THEOPHILO. XXVII de variola de 1878, que chegou a matar em um s6 dia de dezembro, em Fortaleza, "mil e quatro pessoas", tremeu pela sorte de seus pa- tricios, e lastimou a incuria delles, depois da- quella tremenda lig~o, deixarem que de novo a variola os victimasse. Rodolpho Theophilo nao comprehendia como depois do recurso da vaccina animal uma populacdo fosse accommettida de vario- Ia. Assim resolve assistir no Instituto Vacci- nico de S. Salvador a algumas sess6es de vac- cinacao e, habilitado que fosse, regressar ao Ceara e dar combat a variola. Munido dos instruments necessarios e de vitellos torinos, regressou a Fortaleza, on- de chegou a 6 de dezembro de 1900. A cidade estava empestada de bexiga, as noticias que ti- nha recebido nao eram exaggeradas. Montou o seu modesto vaccinogenio e no dia 1 de ja- neiro de 1901 fazia a primeira sessdo de vac- cinacdo, vaccinando nesta occasido centenas de pessoas. Comegou entdo a sua labuta diaria, per- severante para extinguir a variola. Vendo que a populagdo ignorante nao vi- nha para ser preservada, decidiu-se a fazer vi- sitas domiciliarias e foi pelos suburbios, de pa- Ihoga em palhoga, catechisando, pagando os maisrebeldes e assim, depois de uma lucta que descreve em seus livros sobre o assumpto, con- seguiu exterminar a variola de Fortaleza. No interior do Estado a variola grassava em algumas localidades. Rodolpho Theophilo levou ate la a vaccina, creando commiss6es vaccinadoras em todos os municipios, as quaes fornecia vaccina, conseguindo dentro de um anno que a variola se acabasse por complete no Ceard. Foi neste period de trabalho ingente e de sacrificios que o governor do Sr. Nogueira Accioly moveu contra a propaganda de vacci- nagdo que Rodolpho Theophilo fazia desinte- ressadamente sem onus de especie alguma para o Estado e para os particulares a maior perseguigdo. Rodolpho Theophilo resistiu, submetten- do a exame clinic e bacteriologico a vaccina que preparava... Por ordem do Dr. Oswaldo Cruz foi examinada e considerada a "melhor que era possivel". Venceu assim, esmagando o governor que o perseguia. Em 1905 Rodolpho Theophilo publicou o seu livro "Variola e Vaccinacgo no Cea- ra" minucioso relatorio do que havia feito at6 aquella data, desde que foi inaugurado o seu vaccinogenio. A imprensa de todo o Brasil recebeu este livro como um document de grande valor. 0 "Paiz", important orgdo da imprensa do Rio de Janeiro, assim comegou o seu edito- rial de 22 de janeiro de 1915: "0 Sr. Rodolpho Theophilo e vantajosa- mente conhecido nas lettras brasileiras. Mais XXVIII BIBLIOGRAPHI& R. THEOPHILO XXIX de um romance de costumes do norte, cuida- dosamente estudados, deram-lhe notoriedade no circulo dos que se preoccupam com as bel- las lettras. Nenhum dos seus livros, por6m, Ihe darA o triumph moral que Ihe vale o que agora nos chega as mdos: 6 uma pequena brochure de cerca de 250 paginas, impressa em papel com- mum, de distribuicdo gratuita, que se intitula - "Variola e Vaccinacao no Ceara".- 0 Dr. Norberto Bachmann, em sua these apresentada a Academia de Medicina do Rio de Janeiro Variola e Estreptococco de- pois de citar diversas observances, a Rodolpho Theophilo assim se exprime : "Nas grandes calamidades se apuram os caracteres e resaltam os grandes e bons; um home s6 de encontro As formidaveis barrei- ras da ignorancia do povo e da rotina dos go- vernantes, pedindo, exhortando, convencen- do, inabalavel em sua f6 de scientist e de crente, conseguiu eliminar das plagas cearen- ses o mal cruelmente assassino. Ndo ha mais variola no CearA; e, nesta terra formosissima e boa, Sparta de antanho revivencida, terra de fortes, terra de her6es, nunca se olvide o nome puro de Rodolpho Theophilo o mais benemerito de seus filhos. Ao lidimo representante desta raga vigorosa, nobre e pertinaz, ao grande trabalhador, ao scientist proficiente, cuja vida sem jaca 6 XXX BIBLIOGRAPHIA exemplo acrysolado do valor, da virtude e do saber, neste meu trabalho saudo reverente. Mostrem-se-lhe gratos os filhos do sul, si os do norte nao o sabem ser bastante". A Phenix Caixeiral, important associa- cdo de empregados do commercio de Fortale- za, conferiu a Rodolpho Theophilo o titulo de socio benemerito e collocou no seu salao de honra o retrato delle. A proposta foi assigna- da por centenas de socios e do te6r seguinte: "Os abaixo assignados, socios effectivos da Phenix Caixeiral: Considerando que a obra de vaccinaqdo iniciada pelo cidadao Rodolpho Theophilo condensa favors da mais alta relevancia pres- tada ao Ceari; considerando que, devido aos esforcos tdo s6mente do preclaro cearense, nao temos no moment actual nos dominios territoriaes do Estado a invasdo do pestifero morbus; considerando que a Phenix Caixeiral, tem participado indirectamente, mas em larga es- cala, nas pessoas dos seus associados, dos in- estimaveis services do magnanimo cidadao; considerando ainda que o illustre Sr. Ro- dolpho Theophilo, na pratica de sua grande obra, nenhuma remunerado recebeu, quer do governor, quer dos seus conterraneos; ' considerando, finalmente, que por actos de tanta relevancia se tornou um bemfeitor da humanidade, a Phenix Caixeiral resolve, com grande satisfacdo de sua alma, conferir o ti- R. THEOPHILO XXXI tulo de socio benemerito ao Illmo. Sr. Rodol- pho Marcos Theophilo, de 58 annos de idade, filho legitimo de Dr. Marcos Jos6 Theophilo, casado, pharmaceutico, resident nesta capi- tal. Fortaleza, 21 de outubro de 1908". 0 Centro Artistico Cearense, pelas mes- mas raz6es conferiu tambem a Rodolpho Theophilo o titulo de socio benemerito. Ambas as associag6es levaram ao novo confrade os diplomas em ricas molduras. Em 1910, publicou Rodolpho Theophilo o segundo-livro "Variola e Vaccinacdo no Ceara" minucioso relatorio de quatro annos de trabalho. Neste document conta elle todas as per- seguic6es que soffreu do president do Ceara, que acabou demittindo-o de professor vitalicio do Lyceu cearense. Este livro foi muito bem recebido pela imprensa brasileira, fazendo uma verdadeira apotheose ao seu autor. De 1910 a 1913 publicou Rodolpho Theo- philo o "Condurui", livro de contos; "Memo- rias de um engrossador"; "Homens e cousas do meu tempo"; "Lyra Rustica" e "Telesias". Todos estes livros foram bem recebidos. Sobre o "Condurfi", escreveu D. Maria Clara da Cunha Santos: "Ha muito tempo que nao deparo com leitura tAo amena e suggestive. E' um livro ge- nuinamente national em 117 paginas de agra- dabilissima leitura, nao ha nem gallicismos XXXII BIBLIOGRAPHIA nem referencias a vida dos povos de al6m mar. Quem conhece os sert6es do Brasil encontra nas deliciosas descripg6es do escriptor cearen- se paizagens conhecidas e horizontes muito- familiares a quem tem viajado por estes cami- nhos agr6stes". Osorio Duque Estrada, fallando das "Me- morias de um engrossador", diz: "E' um livro interessantissimo e cuja lei- tura se recommend na present hora de bai- xeza e de miserias moraes inominaveis, de que algumas paginas deste volume sAo a psycholo- gia fiel e perfeita. Para dizer o que vale o no- vo trabalho de Rodolpho Theophilo nAo e pre- ciso perder muito tempo em analyse e com- mentarios; basta citar um trecho eloquente de sua obra forte de observagdo e de verdade, quadro vivido e flagrante em que se h6o de ver admiravelmente retratadas as principles figures do triste e repugnante moment que atravessamos". Raymundo MagalhAes, fazendo aprecia- cao da "Lyra Rustica", assim se exprime: "Por uma nova feiqgo apresenta-se-nos o insigne home de- lettras, o Sr. Rodolpho Theophilo. N'"A Fome", no "Paroara", no "Condu- rfi" e em todas as suas demais obras, sempre a mesma penna arrebatadora e forte se deno- ta, num estylo peculiar e caracteristico, que indica desde logo, o romancista de esc61l e de 4..i THEOPHILO XXXIII A V~ VVVM/ AVILVV ^ VlA^/VVVVV V iIV V i / V vvvv1A ^ 1 VVVi eleicao. Ainda nao.houvera manejado o verso, nao porque deixasse de ser poeta, pois em seus romances se aspira aqui e al6m o perfume de- licioso da poesia. Agora apparece Rodolpho Theophilo corn um livro de versos a "Lyra Rustica", que le- mos de um folego, como quem com side en- contra uma taca de fino phalerno. rEm tudo o mesmo espirito e o mesmo es- tylo ,todo sen. As descripg6es sao ahi magis- tralmente feitas com o sabor da linguagem lo- cal, de acc6rdo com o assumpto que elle de- senvolve, ao qual da colorido proprio, incon- fundivel" O mesmo Sr. Raymundo Magalhdes noti- ciando o apparecimento das "Telesias", diz isto: "Sabido que o Sr. Rodolpho Theophilo 6 um romancista jA encanecido, com quarenta annos.de ininterrupto labor intellectual, afigu- rar-se-ia inconcebivel desproposito annunciar o recentissimo apparecimento de seu ultimo livro "Telesias", uma encantadora colleceio de inspirados versos. O autor 6 um poeta de ha quarenta an- nos, que nao vem disputar aos do present nem glorias nem renome. Quem o ler e nao Ihe faltar criterio ha de collocal-o no seu tempo entire os seus pa- res. E, si isto fizer, estabelecendo um paral- lelo entire elle e os demais, notard corn cer- XXXIV R. THEOPHILO teza que Rodolpho Theophilo ndo e de modo algum inferior aos seus contemporaneos. 0 seu grande defeito foi apparecer demasiado tarde, mas 1I diz o brocardo que antes tar- de do que nunca". Rodolpho Theophilo tern no prelo o livro -"LibertagAo do Ceara. Queda da oligarchia Accioly" e a entrar para o prelo mais qua- tro livros, que sdo: "Curso Elementar de His- toria Natural". "Retalhos", "Sedigao do Joa- zeiro", "Crimes do governor da Republica" e "Secca de 1915". ("Tribuna", 19, 20, 23, de Julho de 1917 - Rio de Janeiro). A SECCA DE 1915 I O Ceara 6 uma terra condemnada mais pela tyrannia dos governor do que pela incle- mencia da natureza. A secca 6 o seu mal congenito. De tem- pos em tempos, ataca-o, fere-o de morte. Em Marco de 1915 a secca estava decla- rada; o president do Estado communicou o facto ao president da Republica, dizendo tambem a impossibilidade em que se achava de arcar contra o flagello, soccorrendo a po- pulagdo indigente, e s6 em Julho 6 que o go- verno da Unido attended ao pedido do governor do Ceard, enviando um insignificant soccorro. O Ceard esta condemnado, nao por Ihe faltarem elements de defeza contra as sec- cas, mas pela indifferenga dos poderes pu- blicos. Se a natureza nos legou o terrivel phe- nomeno climaterico, deixou escripto na confi- guragdo do solo o que deviamos fazer para nos remirmos da calamidade. 2 SECCAS DO OEARA 0 mal que nos atormenta nao & daquel- les que o esforco human nao possa remediar. A natureza dotou o cearense de resis- tencia organic assombrosa, para que pudesse enfrentar as seccas. Deixou em todo o Estado, de norte a sul, de leste a oeste, excellentes locaes para gran- des reservatorios, alguns como o dos Or6s, no qual, uma vez feita a barragem, teriamos um lago de muitos milh6es de metros cubicos e com capacidade de irrigar uma area de deze- nas de leguas, toda ella uberrima, corn uma camada de humus de grande espessura. Imitemos a Hollanda, que disputou ao mar uma parte de seu territorio. Ella lutou corn as aguas; lutemos n6s para captivar a agua que cae do c6o. Sobre o Cear6 pesa maldicgo maior do que as seccas: 6 a inepcia e mi vontade dos homes que dirigem a Nacgo e a falta de patriotism de n6s cearenses. Nao amamos a nossa terra como a deviamos amar. Sacrifica- mos bem o public aos interesses da politica- gem. Isso vem de long. Em 1877 Fortaleza estava cheia de retirantes, e o president da Provincia, Desembargador Estellita, pedia soccorros ao Governo Geral. Funccionava 0 parlamnnto, e umn de nossos representantes, Jos6 de Alencar, corn o grande prestigio de seu nome, affirmava a Nacdo que havia exag- gero nas noticias transm'ittidas pelo governor R. THEOPHILO 3 do Ceara sobre a secca, pois os invernos em sua terra comeeavam as vezes em Junho. Esta affirmagAo, proferida por tao emi- nente brasileiro, nos fez muito mal. Naquelle tempo n6s tinhamos como che- fe da Nacao um home culto, honest e bom, Com este grande brasileiro dirigindo os nos- sos destinos, nAo nos livrAmos de um minis- tro acabar a secca por um decreto e suspen, der os soccorros publicos. D. Pedro 20, tendo conhecimento do fa- cto, mandou o seu ministry cassar a ordem e continuar a soccorrer os famintos. 0 chefe da Nacao procedia assim naquel- le tempo, por6m os presidents da Republica nio tem a energia precisa para fazer os seus ministros cumprir o seu dever, tanto que, ago- ra, o ministry da Fazenda protela a remessa de dinheiro para as obras contra as seccas e ndo e chamado A ordem. A politicagem tem sido nefasta ao Ceara em todas as seccas a que tenho assistido. Em 1878, quando em Fortaleza morriam de variola mil pessoas por dia, um nosso re- presentante no Senado, o Sr. Jaguaribe, de- clarava que os variolosos morriam a mingua, que s6 tinhamos um miseravel lazareto, que os medicos se recusavam a prestar seus ser. vigos temendo to contagio. Nunca se disse maior inverdade, nem se fez tao grande injus- tiga. Eu, que assist 6 secca de 1877 do co. 4 SECCAS DO CEARA mego ao fim, que visitei os lazaretos de vario- losos, posso affirmar que a classes medical e o clero se prestaram corn rara abnegacgo. Era medico do Lazareto da Lag6a Funda o Dr. Pedro Borges, que levou a dedicagao at4 a imprudencia. Basta dizer que, tendo uma filha pequenina que nao era vaccinada, ainda assim nao deixava de ir ao Lazareto to- dos os dias. Nao immunizava a creanga por- que a vaccina que recebiamos nao merecia confianga e se acreditava, naquelle tempo, ser a vaccinacdo contra indicada durante as epi- dernias. A politicagem nos fez muito mal... Quando o ministry acabou a secca por um decreto, os que apoiavam o ministerio jus- tificaram o acto illegal e impatriotico, alle- gando os estellionatos praticados pelos com- missarios, que destribuiam os soccorros. 0 Sr. Silveira da Motta, para dar uma idea dos furtos, affirmou levianamente que o Ceard j. nao precisava de soccorros, pois es- tava exportando farinha para Pernambuco. 0 Sr. senador Teixeira Junior confirmou a assergo de seu college, e o nosso repre- sentante senador Jaguaribe, em vez de pro- testar contra a calumnia atirada a sua terra, confirmou-a corn esta grande inverdade: "n'o posso deixar de acreditar, desde que o affirmam, que o Ceara export farinha. A serra da Meruoca pode, nao obstante o fla- R. THEOPHILO 5 VW1 .I/1,WVIW VVWVW WWWWVWVVt. VV1 gello, produzir farinha e exportal-a para Pernambuco". Esta e outras calumnias, tive a felicidade de deixal-as esmagadas corn documents da Alfandega de Fortaleza e de todas as Mesas de Rendas do Ceara, publicados no meu livro - Historia da Secca do Ceara, nos quaes ficou provado que durante a secca nao sahiu uma saca de farinha pelos portos da provin- cia. Estes factos, convem relembral-os, para que os coevos ndo os pratiquem e os poste- ros os conheqam. II 0 Dr. Jos6 Julio de Albuquerque Barros, depois Bardo de Sobral, governor o Ceara de Margo de 1878 ate acabar-se a secca. Homem de grande talent, culto, muito trabalhador e honest, corn grande amor a sua terra, pres- tou-lhe os mais assignalados servigos e sof- freu tambem grandes desgostos, vendo-se ac- cusado injustamente pelos seus adversaries politicos, no Senado. Depois do Desembargador Estellita, pre- sidiu ao Ceara o Conselheiro Aguiar, home de idade avangada, doente, cuja administra- go foi md. Assumiu o governor muito preve- nido corn os ladr5es dos soccorros, que via em todos os cantos e por isso commetteu os maio- 6 SECCAS DO CEARA res erros. Ao Conselheiro Aguiar succedeu o vice-presidente Nogueira Accioly, cujo go- verno foi ephemero, porem malefico. A ca- lamidade estava no seu period agudo, era grande a miseria, mas. .isto ndo impediu que Accioly demittisse os funccionarios publicos que eram seus adversaries politicos. Desde esse tempo, Accioly se revelou. o mais intolerante, o mais vingativo dos politi- queiros. A' secca de 1877 seguiu-se a de 1888 a 1889. Nesse interregno nada se fez que no fu- turo attenuasse o effeito da calamidade. Governo e particulares esqueceram de- pressa os horrores do flagello. Esqueceram que o Ceari esta sempre entire uma secca que vai e outra que vem em caminho. 0 gpverno geral, declarada a secca, ini- ciou os soccorros publicos. Continuaram as obras do aqude do Quixad6, obras estas fei- tas por iniciativa do Imperador. Funecionava o Parlamento, e o Senador Avila, home de talent e devotado amigo do.Ceard, fez ver em vibrant discurso o que eram as seccas e os meios de Ihes attenuar os effeitos. Nesse bello discurso relembrou os horrores da secca de 1877. A esse tempo a nossa representacgo no Ceard estava complete. Quando todos espera- vam que os senadores secundassem as affir- R. THEOPHILO 7 ., mag6es do Senador pelo Rio Grande do Sul, ajudassem-o a pedir soccorros para os seus irmAos, victims da secca, tal ndo aconteceu! Foi uma decepcgo tremenda. Quando o Senador Avila rememorou os transes de supreme angustia, que os retirantes affrontaram na travessia do sertdo a Fortale- za, lances que as pennas dos Poes e dos Sha- kespears sendo pintariam ao vivo, os nossos representantes no Senado o apartearam, ta- -chando aquellas dolorosas verdades de ficdo, de romance ! O Senador Avila descreveu o delirio fa- lociico, a loucura da fome, o caso do pai que matou o filho em Quixadd para comer e, de- pois louco, furioso, morreu moments depois em horridas convulsoes. Este facto medonho, porem veridico, contestou-o o Senador Castro Carneiro assim: - "Isso e um romance, nunca ouvi falar em semelhante coisa". Governava o Ceara o Dr. Antonio Caio da Silva Prado, o qual gozava da maior con- fianga do Governo Geral, pois tinha um ir- indo no ministerio. 0 Dr. Caio era um home de grande ta- lento, variada cultural, porem superficial, as- :similando com incrivel rapidez as ideas que Mhe acudiam ao cerebro. Esse espirito, com se- melhantes attributes, corn um pendor espe. ,cial para administrar, tinha As vezes capri- 8 SECCAS DO CEARA chos e leviandades de creanga. Esses eclipses de seu esclarecido entendimento nao prejudi- cavam o interesse que elle ligava A salvagao public. Assumindo o governor, cercou-se de al- guns intellectuaes e tambem de alguns pan- degos para distrahil-o e suavizar a nostalgia que sentia das grandes capitaes. Assim, nao admira que fizesse uma vez por outra uma creangada. Uma dellas foi a nomeagao da celebre commission de soccorros publicos para Sobral, composta de um hol- landez, que se dizia engenheiro, por alcunha Breguedofe, emerito bebedor de cerveja; de Manol C6co, um bohemio, o iniciador dos ca- fes no Ceard, tendo sido o proprietario do actual Cafe Java; de Raymundo Correa Li- ma, cognominado Raymundinho das Lavras. Este acto leviano foi uma represalia a opposigao, que havia censurado pela impren- sa uma nomeacgo de soccorros, cujos indivi- duos nao julgava idoneos. Caio Prado nao tratou de saber se a cen- sura tinha cabimento e responded aos seus adversaries politicos nomeando a commission Breguedofe. Sem os defeitos apontados, com mais sensatez e circumspecqao, teria tido o Ceard nesse president um perfeito administrator. R. THEOPHTLO 9 A elle succedeu o Senador Avila, grande amnigo do Ceara, cujo governor foi ephemero e sem interesse. Ao Senador Avila succedeu o Cel. Mo- raes Jardim, que nao teve tempo de mostrar as suas aptid6es porque a Republica o sur- prehendeu no inicio de seu governor. Na mudanga do governor houve um ecly- pse da consciencia na alma national. As classes armadas em nome do povo derribaram o throno e desterraram o monar- cha. 0 povo assistiu boquiaberto ao aconte- cimento sem tomar parte nelle. No Ceard onde o Imperador se nao efa, devia ser muito querido, nenhuma voz se le- vantou para protestar contra o modo por que foi feita a Republica. Adheriram todos; logo nos primeiros moments organizaram minis- terio e esqueceram a secca que nos flagela- va. Felizmente isso se deu em Novembro de 1889 e logo em Janeiro de 1890 comegava o inverno. Se a secca continfia com a Republica sem Constituicgo, tudo ainda desorganizado, ter-nos-iamos acabado de fome. Tivemos uma tregua de oito annos. Tudo ia bemn, tinhamos recuperado o perdido, quando nos chega a secca parcial de 1898. Governava a Republica o Dr. Prudente de Moraes e o Ceara .o Dr. Antonio Pinto Nb- gueira Accioly. 10 SECCAS DO CEARA A bancada cearense havia sido eleita, ou melhor nomeada, pelo president do Esta- do, o qual escolhia os representantes na Ca- mara e no Senado, nao pela sua competencia, mas pela sua passividade. 0 Dr. Accioly queria homes incondicio- naes, que Ihe obedecessem cegamente. Dessa vez, nao sei porque, enganou-se. A bancada jA no ultimo anno de legislature scindiu-se. Quatro deputados puzeram-se em opposicgo ao governor do Ceara. Era a maldigio eterna que pesava sobre o nosso infeliz Estado. A secca de 1898 assolava uma parte do Ceara e o exodo se fazia para Fortaleza. Alguns mil famintos esmolavam a caridade public pelas ruas da capital. Na Camara os nossos representantes que estavam em opposicao ao Governo do Estado pediam soccorros para os famintos. Os que se conservavam firmes ao lado do Sr. Accio- ly diziam, corn grande cynismo, que o Esta- do estava apparelhado para soccorrer os fla- gelados; que nao precisava do auxilio da Unido. Esta affirmacgo, que nao era verdadeira, nos fez muito mal. Alguns mil retirantes mendigavam em Fortaleza e o governor do Estado nao Ihes prestava assistencia de especie alguma. Se nao fosse a caridade public, os soccorros que nos enviavam do norte e sul da Republica e R1. THEOPHILO 1 1 a emigragdo para o Para, promovida pelo president daquelle Estado, teria morrido muita gente de fome. :A miseria em Fortaleza era grande; po- re6r a maibria da bancada cearense na Ca- mara continuava a affirmar corn o maior cy- nismo que o governor do Ceara estava appa- relhado para enfrentar o flagelo. E' preciso de quando em vez rememorar esses factos, para vergonha de seus autores. A populagao de Fortaleza assistia revol- tada a indifferenca do Governo, que se nao doia de ver aqui um agent do governor de outro Estado soccorrendo os retirantes, pro- vendo-os de tudo, immunizando-os contra a variola e depois embarcando-os para o ParA! De alguns Estados do sul havia agents aqui alliciando soldados para as suas milicias ou trabalhadores para as suas lavouras! 0 governor do Estdo nao sentia tanta hu- milhagao. Accusado por tdo grande falta, procurou remedial-a fechando os portos a emigraqAo ,pela cobranga do imposto de um conto e qui- nhentos mil r6is de cada agenciador de emi- grantes. Este imposto absurdo e illegal nada adeantou. Era um imposto de sangue. Era o mesmo que o imposto de gado bovino, pelo qual o Estado cobrava um tanto por cabega, quando sahia para f6ra do Ceard. 0 agencia- dor de retirantes escolhia a flor dos nossos 12 SECCAS DO CEARA homes, porque tinha de cada individuo no- vo e forte cem mil r6is do Estado que o com- missionava. Que Ihe importava a elle pagar ao CearA o imposto de um conto e quinhentos mil r6is, se os seus lucros dariam para essa despeza, sobrando-lhe grande quantia? Essa media nao tendo dado resultado, o Sr. Accioly, que tinha grande pendor por tudo que era f6ra da lei, da justiga, do direi- to, inventou uma folha corrida, passada em Fortaleza, sem a qual o retirante nao podia sahir do Estado. Essa media, al6m de esta- pafurdia, era irrisoria. 0 que poderia dizer a justice de Fortaleza de um individuo cujo domicilio era em outra comarca? 0 imposto, alem de p6r entraves a eihigracAo, era uma fonte de renda para o escrivAo Raimundo Peixoto, compare e amigo incondicional do Sr. Accidly, que assim Ihe remunerava os ser- vicos, services esses que o Presidente do Cea- ri tinha em grande conta. Raimundo Peixo- to tinha no journal official, "Republica", uma secgao em que escrevia com humorismo soez uns bilhetinhos descortezes aos adversaries de seu compare president. Felizmente o anno de 1899 veio acabar corn essa miseria moral e tambem com as miserias materials. Acabou-se a celebre e jAmais esquecida folha corrida, que custava vinte mil reis! R. THEOPHILO 13 Ominosos tempos esses! Al6m da fome com o seu. acompanha- mento de torturas, a violencia dos poderes publicos!... O .inverno de 1899 comegou no fim do anno secco de 1898. Foi o inverno mais copio- so que o Ceard teve; em Fortaleza o pluvio- metro elevou-se a altura de 2.500 millis. A esse anno de inverno phenomenal se- guiu-se a secca de 1900, o anno mais secco do Ceard atW hoje. Cada vez me convengo mais de que o Ceara 6 uma terra normal sob todos os pontos de vista. O home 6 different dos outros ho- mens, os animaes tambem e at6 as plants. A secca de 1900 nao foi de effeitos mais desastrados, porque o Estado inteiro regorgi- tava d'agua. 0 inverno de 1899 nao s6 foi co- pioso, mas long, prolongando-se at6 Setem- bro. Este inverno, o maior que regista o pluviometro em Fortaleza, veio confirmar mais uma vez a minha opinido acerca da ne- nhuma influencia das manchas do sol sobre as seccas do Ceara e os grandes invernos. Se as manchas do sol influissem sobre as esta- 6es, nao teriamos um inverno copioso pre- cedido e seguido de annos de secca. Se as manchas do sol augmentam grada- tivamente dentro do period certo de onze annos, se os grandes invernos coincidem corn o maximo de manchas solares e as seccas 14 SECCAS DO CEARA com o minimo de manchas, como se explica um.anno de inverno copiosissimo, como o de 1899, intercalado entire dois annos de secca, 1898 e 1900 ? ! Em julho de 1900 assumiu o governor do Estado o Dr. Pedro Augusto Borges, rece- bendo-o das mros do Dr. Antonio Pinto No- gueira Accioly, que deixava o Estado com- pletamente arruinado. O Dr. Pedro Borges, na impossibilidade de soccorrer os famintos, valeu-se do Gover- no Federal, do president da Republica, o Sr. Dr. Campos Salles. Comecoi entdo a luta de todos os tempos: o Ceara a pedir pdo e o governor central a protelar por todos os meios a assistencia public, expressamente garanti- da pela Constituicdo da Republica. Campos Salles foi o primeiro president que governor corn seccas. Mostrou logo o seu pensar sobre soccorros publicos. Depois de repetidas reclamag6es do Go- verno do Estado e da representacdo cearense, consentiu na abertura de um credit de dez mil contos para a assistencia aos famintos. Antes de votado o credit, mandou uma men- sagem ao Congresso pedindo que a verba fosse exclusivamente para passagens aos re- tirantes para f6ra do Ceara!... 0 Sr. Joaquim Catunda, nosso represen- tante no Senado, influenciado pelo "Centro Cearense" do Rio, quebrou o seul modus viL R. THEOPHILO 15 vendi e fez um energico protest contra a mensagem do Sr. Campos Salles, conseguindo que fosse votado o credit sem aquella clau- sula. Sanccionada a lei, comecou o period das protelac6es. Primeiro que a ordem do Con- gresso satisfizesse a todas as exigencias dos Regulamentos e vencesse a mi vontade dos empregados das Repartic6es, acabar-se-ia o anno e a fome mataria milhares de cearen- ses. Do credit de dez mil contos, apenas fo- ram gastos com o CearA, pela verba soc- corros publicos, a qu.antia de oitocentos contos. Logo que cahiram as primeiras chu- vas, em fins de Dezembro de 1900, o Gover- no Federal suspended a assistencia aos fla- gelados, como se a agua cahida do c6o fos- se sufficient para alimentar essa infeliz gen- te. As obras que se estavam fazendo ficaram paradas, muito embora a nAo conclusao del- las trouxesse prejuizos para a Nagdo. Acabada a secca de 1900, voltou tudo ao statu quo. Governo e particulares esquece- ram depressa que o Ceara esti sempre en- tre uma secca que vai e outra que vem e nao tomaram providencias contra os effeitos da future calamidade. CAPITULO III A secca de 1915 chegou sem prodromos, que lhe annunciassem a vinda. 0 moment para uma calamidade de pro- porg6es aterradoras era o melhor possivel. O Ceara estava mortalmente ferido pela sedigdo do Joazeiro, pelas "solidaristicas" e pela guerra da Europa. A sedigdo do Joazeiro, esta tristissima pagina da historic political do Brasil, havia rebentado no interior do Estado e chegado is portas de Fortaleza, tudo destruindo. Por onde a horda dos barbaros protegi- dos pelo governor do Marechal Hermes pas- sou, tudo ficou devastado! Desde o Crato at6 Fortaleza, em uma extensAo de mais de cem leguas, tudo foi saqueado, os celeiros rouba- dos, e o que nAo puderam conduzir queima- ram ! Franco Rabello, ou antes o Ceard, paga- va o grande crime de nao ter apresentado o nome de Pinheiro Machado para president da Republica. 18 SECCAS DO CEARA A onda exterminadora atemorizou de tal modo a popul'ago dos logares em que pas- sou, que esta abandonou as casas e fugiu aterrada, deixando A discricao dos bandidos os seus haveres. Cidades importantes como Crato, Barba- lha, Jardirh, Igu~atu', Quixeramobim, Quixa- da, Baturit6, Pacatuba, Maranguape, foram saqpeadas pelos barbaros, armados para fins politicos pelo Marechal Hermes ao mando de Pinheiro Machado. Quando esta desgraca passou pelo Ceara era precisamente no tempo de se plantarem os rocados, de se fazerem as sementeiras. Os lavradores abandonaram os campos e as se- mentes que haviam germinado morreram a mingua de monda. 0 anno seria de penuria. Por cumulo de perversidade os malfeitores se apossaram das armas de caca, que achavam, como tam- bem dos objects de valor. Os gados que os malvados encontravam nos campos matavam para se alimentarem e os cavallos eram apre- hendidos para montaria. Em um percurso de mais de cem leguas tudo ficou arrasado, destruido, como se um incendio tivesse lavrado naquellas paragens, exceptuando as casas dos amigos dos sedi- ciosos. Nas innumeras acq6es de indemnisaqao que foram propostas contra o governor da R. THEOPHILO 19 UniAo como mandante da sedigAo do Joazei- ro, at6 hoje nao appareceu uma s6 de adver- sario politico ao governor de Franco Rabello. Ou as propriedades dos adversaries do governor do Estado foram por ordem superior respeitadas ou os inimigos do poder consti- tuido nao tinham o que perder. A esta calamidade seguiu-se outra, de ordem different, por6m de effeitos tamnbem maleficos: foram -as sociedades mutuarias fundadas em Fortaleza e depois em diversos pontos do Estado. Estas associacoes, as primeiras no gene- ro que aqui appareceram, foram uma arma- dilha na qual cahiram os tolos e os de m6 f6. Os estellionatarios que as crearam recebiam uma quantia e no fim de trinta dias paga- vam a quantia recebida, porem decuplada. Quem recolhia quatro mil reis recebia qua- renta mil r6is. A insania do jogo dominou a populagAo da cidade. Houve um verdadeiro contagio. Perderam o juizo. Rarissimos foram os que escaparam ao contagio do vicio. Pessoas respeitaveis, de moral sA, jogavam. .Ninguem reflectia no absurdo dos juros, decuplando em 30 dias a quantia depositada. Os que pensaram no caso e fizeram entradas, estavam de ma f6, sabiam que os que viessem por ultimo seriam logrados. 20 SECCAS DO CEARA Com o success da primeira "solidaristi- ca", fundaram-se outras, offerecendo maio- res vantagens. Estabeleceu-se a concorrencia. Da capital espalhou-se a praga das mutua- rias ao interior do Estado. Surgiram estas ar- madilhas em quasi todas as localidades, atW no Joazeiro, sob o patrocinio do santo Padre Cicero. O jogo chegou ao delirio. Alguns negoci- antes se arruinaram. 0 estellionato ndo at- tingiu a milhares de contos, porque os depo- sitos da Caixa Economica, cerca de dez mil contos, nao puderam ser retirados, em vista do mao estado financeiro da Nagao. 0 crime que se estava commettendo no Ceard era mutuo. Tao estellioi.atario era o banqueiro coma o que jogava. Ambos esta- vam de mA f&. CAPITULO IV Quando o governor do Estado percebeu o grande perigo que nos ameagava, mandou fechar as "solidaristicas". A grita foi geral. Queriam recuperar o prejuizo, que subia a dezenas de contos de r6is. A media foi tar- dia, porem aproveitou. A esta calamidade, para acabar de esbo- car a mortecor do quadro da secca, seguiu-se a guerra da Europa. NAo era o jagunco do Padre Cicero, bronco e matador, de trabuco ao hombro e fa- cho na mno, assassinando e incendiando, que vinha retrogradar muitos seculos a civiliza- do, mas o home culto da Europa. Esta guerra foi uma desillusio para os que acreditam que a cultural do espirito des- troe no home os seus mAos instinctos. Para mim, a besta humana 6 a mesma das primeiras edades da terra, quando an- dava nia e era antropophaga. Ella matava o seu semelhante para comer e hoje mata s6 para destruir. As atrocidades commettidas pelos povos mais cultos do mundo deixam o espirito de quem media sobre ellas em um mortificante desconforto. Para que abrir escolas, cultivar a intelli- gencia humana, se o cultivo intellectual do 22 SECCAS DO CEARA home o aproveita, nao para o bem, mas co- mo um factor poderoso do mal? Comparem-se os crimes do passado com os do present. 0 home modern mata com mais arte, rouba com mais astucia e corrom- pe com mais elegancia. A estatistica do crime sobe, em vez de descer. A conflagracgo europ6a pretend arras- tar o mundo inteiro. N6s j:i sentimos os seus funestos effei- tos, e praza aos Ceos nao sejamos obrigados a entrar na chacina humana. A guerra aggravou mais o nosso estado ja bastante critic, pela sedicdo do Joazeiro e pelas "solidaristicas". Os products que im- portavamos subiram assombrosamente de prego e os que exportavamos ficaram muito tempo sem livre sahida. Eram precisamente estas as condicges do CearA, quando chegou a secca de 1915. 0 inverno de 1914 havia sido regular. Depois do equinocio de Setembro, notou-se a falta das infaliveis chuvas de cajui. 0 Piauhy estava tambem secco. Passaram-se os mezes de Outubro., No- vembro e Dezembro, e o inverno, que sempre vem do Piauhy pelo sul do Ceara e comega naquelles mezes, nao tinha apparecido. A apprehensdo de secca era geral. R. THEOPHILO 23 0 mis de Janeiro de -915 acabou-se, e apenas, em Fortaleza, o pluviometro reco- lheu quatro millimetros ! Entrou Fevereiro com b6as promessas de inverno. Para desfazer a md impressed deixada por Janeiro, elle logo no primeiro dia trouxe-nos uma forte trovoada e chuvas copiosas, que elevaram o pluviometro A al- tura de 75 mills. na capital. Esta chuva foi geral, chegou ao alto ser- tao. Todos acreditavam que o inverno estava comegado. Continuaram as chuvas at6 o dia 18, como se ve das observances em seguida, e suspenderam. Fevereiro Dias Mills: 1 75 2 12 3 6 4 21 5 2 7 1 8 7 9 2 10 2 11 66 12 1 18 12 207 CAPITULO V Depois deste Fevereiro normal, pois nos annos bons ha sempre os se-as celebres ve- ranicos, entrou Marco corn um ceu de secca, corn muito vento de Leste, sem promessa de chuvas proximas. Passou-se a primeira decade, e as chu- vas ndo voltaram. Appellou. se para o equinocio, a derradei- ra esperanga. Passou-se a segunda decade e com ella o equinocio, e apenas choviscos bor- rifaram a terra. Acabou-se Margo e apenas o pluviometro recolheu, em seus 31 dias, 50 mills. menos que em todos os annos de secca, a excepgao de 1900. Estava lavrada a sentenga que condem- nava o Ceard a um ou mais annos de miseria. Passado o equinocio, o Presidente do Es- tado declarou a secca officialmente e pediu ao Governo da UniAo promptas providencias. Comegou entAo a eterna campanha do Ceara flagelado com indifferenga do Gover- no Central. 26 SECCAS DO CEARA Se no tempo do Imperio, com um home da estatua moral de D. Pedro 2., e minis- tros como Sinimbfi, Ouro Preto, Saraiva, Rio Branco e outros, n6s padecemos tanto, ima- gine-se agora, com um PandiA Calogeras e outros sem valor intrinseco, enthronados pe- la politicagem ! 0 Chefe da Nacdo negava-se a attender de prompto ao pedido de soccorro, que, den- tro da lei, fazia o Presidente do CearA, alle- gando nao ter credit nem verbas para tal despesa. A negative nao era procedente, por- quanto a Constituiqgo da Republica precei- tda a assistencia public em caso de calami- dade. Fosse o governor, na crise de uma innun- dac6o, de um incendio, de um terremoto, es- perar que se reunisse o Congresso e Ihe disse credits para soccorrer as victims daquellas calamidades, e seria a morte a assistencia ga- rantida pela lei. Em Maio abriu-se o Congresso, e a nossa representa~go, caso unico, uniu-se em uma s6 vontade, em um s6 pensamento e deu com- bate A procrastinacao dos poderes publicos, conseguindo o credit de dez mil contos de reis para as victimas-da secca do nordeste do Brasil. Em Julho o Presidente -da Republica, para. se ver livre dos repetidos telegrammas do Dr Benjamin Barroso, pedindo soccorro, R. THEOPHILO 27 enviou 50 contos de reis, nao do credit vota- do, pois este havia sido aberto, mas percorria os longos caminhos das exigencias dos regu- lamentos. Depois ainda seria retardada a remessa para o Ceard pelo Sr. Calogeras, que era nosso desaffecto, nato e gratuito. Este minis- tro nao perdia occasido de mostrar quanto desejava ver o Ceard anniquilado pela fome e pelo despovoamento. Foram tantas as suas picardias, que o Presidente do Estado, indi- gnado, passou um telegramma ao Presidente da Republica queixando-se delle e fazendo algumas all'us6es a denuncias trazidas pela imprensa do Rio e que muito desabonavam a honestidade do referido ministry da Fa- zenda. CAPITULO VI A primeira leva de retirantes chegou a Fortaleza, vindo de Iguatu, pela Estrada de Ferro de Baturit6. O trem que a trouxe chegou ao escure- cer. O Dr. Benjamin Barroso foi recebel-a. Compunha-se de cento e tantas pessoas. Nao havendo onde agasalhar essa gente, foi man- dada abrigar-se no Passeio Publico. 0 local escolhido ndo podia ser mais inconvenient. Estava na frente de um hotel e ao lado de um hospital. Accresce que o vento, soprando do mar, varria o hotel e as casas do lado do Norte e, soprando de leste, o hospital da Mi- sericordia. Na manhA do dia seguinte fui visitar o improvisado abarracamento. Todas as arvo- res estavam occupadas, de quasi todas pen- diam redes sujas, que exhalavam um fartum de immundicie. Pensei encontrar aquellas figures tdo minhas conhecidas nas seccas passadas, es- queleticas, repellentes; mas enganei-me. 30 SECCAS DO CEARA Os retirantes estavam gordos. fortes e rosados. As creancas, rubicundas, bem mostra- vam ter vindo dos ares puros e sadios do ser- tao. Palestrei corn elles algum tempo sobre a sua estada em Iguatfi, a viagem, a fome no sertao, e fiquei convencido de que aquella gente era preguigosa e havia corrido antes de enfrentar o flagelo. Dois tergos eram dos Estados limitrophes, principalmente da Pa- rahyba. A secca de 1915 ndo tinha a intensidade das a que assist na ultima metade do seculo XIX. Isso est~ cabalmente provado com a me- nor deslocago da populago sertaneja e corn a menor importago de generous alimen- ticios. Nas serras e no litoral, o inverno, em- bora de pouco mais de 700 mills., deu para crear algum milho, feijdo e mandi-oca. Os sertanejos que emigraram foram jus- tamente os mais fracos. Os fortes ficaram em seus domicilios, alimentando-se de raizes silvestrds, esperan- do pelo future inverno. No dia seguinte ao da minha visita ao Passeio Publico, fui visitar o Presidente do Estado. Encontrei-o apprehensivo com a secca. Procurei levantar-lhe o animo, dizendo- tIh que nao tinhamos uma secca e sim um repiquete de secca. It. THBEOPHILO 31 Nessa occasido elle esbogava a plant de um abarracamento que ia mandar constrair para os retirantes. Pedi licenga para' discor- dar da sua opiniao. Agglomerar os retirantes era matal-os. Relatei-lhe os exemplos de 1877, 1888, 1900, sendo este o mais frisante. Em 1900, disse-lhe, nao tivemos, podZ-se dizer, assistencia public. Comemos das esmolas que nos deram os nossos irmdos do norte e sul. O Governo do Estado deixou os retiran- tes abrigar-se onde bem entenderam, e es- tes se agasalharam nao s6 sob as arvores dos suburbios como tambem nas das pracas e ruas d,. Fortaleza. Findou-se o flagelo e nao appareceu uma s6 epidemia, A excepgao da variol. a companheira inseparavel da secca. O Dr. Benjamin Barroso nao quiz tomar o exemplo de 1900, allegando que assim nao poderia fiscalizar a distribuigdo dos soccor- ros e velar pela honra das families que a secca expatriava. A sua virtuosa esposa secundava o pen- sar delle, muito interessada e muito commo- vida pela sorte das infelizes mogas que a sec- ca fizera abandonar o lar. Discutidos os pr6s e os contras do abarracamento, f.cou re- solvido que os retirantes seriam recolhidos a uma grande Area arborizada e cercada nos 32 SECCAS DO CEARA suburbios da capital. Manifestei-me contra essa resolugdo. Esse abarracamento, mesmo ao ar livre, se empestaria e empestaria a cidade no fim de alguns meses. CAPITULO VII Ha cerca de quarenta annos, tivemos a grande secca de 1877, que foi uma verdadeira hecatombe. 0 governor nesse interregno nao cogitou de um meio. de premunir os brasilei- ros do nordeste contra os effeitos das seccas. Nem ao menos tratou de organizer um plano de soccorro, c.uja base essencial seria impe- dir por todos os meios a deslocacao da po- pula~go sertaneja em tempos de fome; a fixa- gdo della em seus domicilios, dando-lhe tra-& balho e nunca esmola. Se em algumas zonas fosse impossivel fixar os habitantes, vindo elles ter a Fortaleza, nao Ihes dar passage para f6ra do Estado, nem agglomeral-os em nucle- os, abarracal-os. A providencia a tomar seria espalhar os retirantes ao long da Estrada de Ferro de Baturit6, onde construiram as suas choupa- nas uma long da outra e o governor os man- daria alimentar. Para que nao ficassem ina- ctivos, seriam empregados em servigos na vi- zinhanga de suas moradas. Nao faltaria em que fosse aproveitada a actividade delles. 34 SECCAS DO CEARA Bastavam os reparos das estradas de ro- dagem, que correm parallelas 6 Estrada de Ferro, as quaes se acham em pessimas condi- g6es. Os retirantes estiveram no Passeio Pu- blico atW se preparar no Alagadipo o future abarracamento, o qual tomou, nao sei por- que, o nome de Campo de Concentraco e o povo baptizou de curral. 0 retirante perdeu o seu antigo e expressive nome e comecou a chamar-se flagelado. Cousas do tempo e da mod a. Em todas as seccas chamou-se ao serta- nejo que emigra retirante e n6o flagelado. Flagelados somos todos n6s durante a cala- midade. Muitos cearenses n io soffrem privacao de especie alguma, mas ficam sujeitos, como os retirantes, as molestias que se desenvol- vem durante as seccas. Nao sera um flagelo ter-se a porta cheia de famintos, de manh 6a noite, pedindo es- mola pelo amor de Deus? Haverd nada que mais afflija a quem tern coracio do que aquella triste e pungente supplica, feita em voz sumida pela fome, corn a physionomia decomposta pelo rictus da miseria? Quanto nos confrange a alma ver ho- mens validos, novos, a esmolar a caridade It. THEOPHILO 35 public, porque nao encontram trabalho de especie alguma! Estes desgragados, que a esmola avilta, que a incuria do Governo da Republica deixa esmolar, seria melhor que se revoltassem e pela forga fizessem valer os seus direitos, em- bora fossem esmagados pelo poder public. Caminham fatalmente para a morte. Devem reagir emquanto podem, antes que a fome Ihes immobilize os bragos. A esmola nunca, antes o furto. 0 direito de conservacio 6 o mais sagrado dos direitos naturaes. Abandonados A more pelos poderes pu- blicos, implorem, dos particulares que sao a- bastados, um pouco de pao, dando-lhes o tra- balho. Suppliquem incessantemente. Quando se convencerem de que sao baldados os pedidos, quando ja nao supportarem a fome. quan- do a mulher e os filhos estiverem prestes a cahir de inani9go, 6 chegado o moment su- premo do Se va te ipsum. Para salvar a vida, todos os meios sao li- citos. NAo havia mais duvida sobre a secca. Alguns espiritos optimistas, animados de um sentiment doentio, appellavam para Abril. Este mez entrou corn umas negacas mui- to parecidas com as da nossa gente. Choveu mais do que em Margo; alguns troves ri- 36 SECCAS DO CEARA bombaram em Fortaleza, mas isso ndo influiu para minorar os effeitos do flagelo. Chegou Maio, corn as suas manhAs lumi- nosas e frescas. Veio Junho, o derradeiro mez da esta- go invernosa. No litoral os campos eram ver- des, por6m um verde de folha prestes a se estiolar. No sertao a poucas arvores o inver- no tinha vestido. Os acudes tinham a agua velha e os rios tinham os leitos entupidos de folhas seccas. Entrava o verAo, e a terra estava quasi tdo secca como em comego de Janeiro. CAPITULO VIII A primeira visit que fiz ao Campo de Concentra qo me deu a certeza de que em breves dias teriamos ahi um Campo Santo. Em um quadrilatero de 500 metros de face estavam encurralados cerca de sete mil retirantes. Percorri todos os departamentos daquelle deposit de series humans. Abriga- vam-se a sombra de velhos cajueiros. Via-se aqui e ali uma ou outra barraquinha coberta de esteira ou de estopa, mas tdo miseravel era a coberta que ndo impedia que a atra- vessassem os raios do sol. A cozinha era tambem ao tempo. Em al- gumas duzias de latas, que haviam sido de kerosene, ferviam em trempes de pedra gran- des nacos de care de boi, misturados a ma- xixes, quiabos e tomatoes, que subiam e des- ciam ao sabor da fervura. Achei exquisitas as verduras e mais ainda os tomatoes. Pendia de um galho de cajueiro um quar- to de boi. Pude entdo avaliar a pessima qua- lidade da care, s6 digna dos urubfis. Infor- maram-me que aquella era b6a, comparada a 38 SECCAS DO CEARA outras que mandara o fornecedor. Disse-me pess8a idonea que as rezes que morriam, de- magras ou do mal, eram mandadas para o Campo de Concentracgo. A care que se vendia no mercado pu- blico era de pessima qualidade. 0 gado que descia do sertao era magro e doente. Epizoo- tias de todo o genero grassavam. Os gados se acabavam mais de doenga que de fome. Appareceram molestias desco- nhecidas. Uma das que mais ceifaram os rebanhos foi o mal do chifre. E'ssa epizootia era mor- tal. A molestia comegava pela supuracgo do sabugo dos chifres que acabavam apodrecen- do, infeccionando o organismo. Tinhamos uma Inspectoria de Veterina- ria corn sede em Fortaleza, "esta grande fa- zenda de crear", e os gados no sertao se aca- bavam de peste. A pecuaria quasi se anniqui- lou. Para se avaliar como o sertao estava cheio de gado, basta dizer que exportimos no period da secca de 1915 um milhdo e meio de pelles. Nessa cifra ndo estdo incluidas as pelles que sahiram pelos outros portos do Es- tado, pelas fronteiras, nem as das rezes que fo- ram encontradas mortas, meio putrefactas. Isso nao 6 tudo. Pensava-se que, findo o fla- gelo, nao houvesse gado sequer para semente, quanto mais para o consumo.O Ceard 6 como a R. THEOPHILO 39 Phenix da Mythologia: vive a resurgir das su- as proprias cinzas; e a herva de Jerich6 dos sert6es combustos da terra das seccas. Quem assistiu a secca de 1877, a secca- typo, que durou tres annos, que tragou em sua voragem desde o proletario sertanejo ate o rico fazendeiro; que, anniquilou os gados,- e viu a resurrei~go desta terra, o seu renasci- mento tres annos depois, ndo pode admittir que haja secca que a acabe. Em meio do inverno de 1916 o gado que descia para o abastecimento da capital era superior ao consume. 0 Ceard 6 uma terra incomprehensivel. E' por isso que o povo diz:-"aqui ou e oito ou oitenta". E' uma verdade. Quem viu a falta d'agua em 1915 e v6 o excess d'agua em 1917, con- firma o dizer do povo. No sul os destemperos de nossa natureza t6m feito desconfiar de nossas palavras, de nossa sinceridade, e levar-nos na troqa. Hontem, n6s pediamos soccorro porque estavamos torrados por uma sececa; hoje, pe- dimos soccorro porque estamos encharcados pela inundacgo. Visitei a pharmacia, ou antes, o deposit de medicamentos manipulados. Havia reme- dios de urgencia e tambem especialidades pharmaceuticals, panaceasas. Conversei com alguns retirantes sobre a vida delles ali e me disseram ser regular. CAPITULO IX Uma coisa que muito devia interessar a :saude daquella populagdo era o local em que se depositavam as materials fecaes. Fui vel-o. Ficava a sotavento do abarracamento, no fun- do do cercado, ao poente, a pequena area coberta de pequenos arbustos, onde os fa- mintos, numa promiscuidade de bestas, defe- cavam, ficando as fezes expostas as moscas. Aquelle attentado a sA hygiene nao podia deixar de ter consequencias desastradas. Visitei as aguadas. Eram as mesmas de Fortaleza, buracos a flor da terra, ao tempo. A Inspectoria de Obras Contra as Sec- cas 6 um mytho. Figura "nos orgamentos com grandes .sommas e, na hora de dar combat ao flage- lo, onde estava, que nao vinha fazer um pogo profundo no abarracamento dos retirantes, diminuindo os factors de destruicgo daquel- la gente? 0 seu director, em vez de residir na ter- ra da secca, mora no Rio, installado em um, palacio, fruindo avultados vencimentos e go- 42 SECCAS DO CEATR zando os prazeres da Capital da Republica, O que se tern gasto com a Inspectoria das Obras Contra as Seccas, corn os palacetes em que funccionam no Rio e nos Estados, daria para a construccgo do grande agude dos Or6s. A vida em promiscuidade no abarraca- mento, sem os mais rudimentares preceitos de hygiene, havia de ser fatal aquella gente. A agglomeraqao de pess6as mal asseiadas 6 um attentado a saude public. A secca de 1877 nos mostrou que reunir retirantes e agglomeral-os 6 matal-os. A secca de 1900 provou que a populacgo faminta, ainda que sem abrigo, mas disseminada em grande area goza b6a saude. Nem a peste bubonica, que grassava entdo, a atacou. Admirei que os retirantes estivessem ain- da gordos e corn muito b6a c6r. Deviam isso a D. Pedro 2.0, a quem se deve a construcco da Estrada de Ferro de Baturit6, a qual pertencia a uma, Empreza e depois o Governo Geral, na secca de 1877, a encampou, porque o Imperador assim o quiz. D. Pedro 2.o viu long. Elle encurtou aos futures retirantes oi- tenta leguas da estrada da fome. Sabem o que sao oitenta leguas de jor- nada, com fome e sede, sob um sol que cal- cina e sobre um solo que escalda, tendo como R. THEOPHILO 43 alimento raizes venenosas e como bebida uma mistura de saes calcareos e ferricos? E' o caminho de um calvario cujas an- gustias ndo ha penna que descreva nem a men- te que possa imaginar. Os nossos irmdos do sul nao conhecem o martyrologio de seus irmaos do nordeste. CAPITULO X 0 grande Euclydes da Cunha horrorizou- se vendo a secca atrav6s de uns versos de Guerra Junqueiro, que nao teve modglo e nem a viu. Quanto mais se elle visse a fome em suas diversas e medonhas modalidades! O que diria se visse um pai no delirio famelico matar o filho para comer; uma des- gragada mai, s6 ossos e pelangas, morta e resupina no meio da estrada, no seio uma creancinha esqueletica procurando sugar al- gumas gotas de leite do cadaver; um reti- rante animalizado, mettido numa gruta, ali- mentando-se da carniga humana que encon- trava nos caminhos; uma creanca encontra- da em uma casa abandonada a beira do ca- minho, fechada na camarinha, cahida de fome e chupada de morcegos, que Ihe co- briam o corpo como um lengol negro; um desgra4ado retirante estirado na estrada, no marasmo da fome, sem forgas para mo- ver um musculo, cercado de urubfis vorazes e famintos, que nao esperam a morte da victim, mas a apressam vasando-lhes os 46 SECCAS DO CEARA 1VA^WWV11 VV1il44VVlVVVWAAAV1 A4VWA14,lV olhos com o bico adunco, como um espinho a enterrar-se-lhe na pupila dilatada e negra (a luz apaga-se, e o banquet dos corvos co- mega); Joaquim Punar6, um negro hedion- do, feroz como uma hyena, em Canind6, no delirio da fome, comendo uma creanga com mel de abelhas ? ! Estas scenas macabras, impossiveis de descrever ao vivo, o Imperador, o nosso gran- de amigo, diminuiu-as com as estradas de ferro. E' por isso que os retirantes que che- gam A Fortaleza estdo nutridos. Aquelles or- ganismos, mormente os das creangas, haviam de pagar pesado tribute A absolute falta de hygiene em que viviam. 0 Governo do Esta- do errou agglomerando-os, mas errou sem in- tencao de errar. A sua ideia era sA, era louvavel. 0 seu fim era inipedir o furto e a prostituigo, co- mo se taes crimes pudessem ser impedidos durante as calamidades. A miseria nAo tem honra, e o brasileiro, salvo rarissimas exce- pgqes, nao consider furto tirar o dinheiro da NaA0o. Na secca de 1877, a secca-typo, eu pre- cisava conhecer de visu um abarracamento de retirantes, precisava models para o ro- mance A FOME -, que publiquei depois. Estudei detidamente a calamidade e a psychologia do faminto. A observa~go dos R. THEOPHILO 47 phenomenon me convenceu de que a miseria tudo dilue de bom na alma humana. Ha excep6es, mas estas sao rarissimas. As scenas que descrevo na "Fome" sao co- pias fieis do original. Medeiros de Albuquer- que, lendo-as, escreveu: Nos seus livros onde vale a pena ler uma descripgco dessa calami- dade e no romance a Fome. Esse romance tern o mesmo nome de uma obra celebre de um escriptor escandinavo, Knut Hanson. Se porrm 4 mais incorrect e por assim dizer tumultuoso, tern a superioridade de ser mais verdadeiro. A Rodolpho Theophilo,; infeliz- mente, nio faltaram models. Por isso o seu livro 6 vivido. Sente-se que 6 verdadeiro. Os retirantes que se achavam ali no Campo de Concentracdo nao pareciam reti- rantes. Que difference das mumias de -- -- -- 1877 _. -- .- 0 meu espirito deante delles nao se commoveu. Nao vi um trago de mi- seria organic naquelles corpos. As crean- cas estavam fortes, e que pena tive dellas ! A sua sadde nao duraria muito. lam cami- nho da morte, que nao tardaria. Fortaleza 6 um matadouro de creangas que vivem com certo conforto, em melhores condiges de hygiene, quanto mais de peque- ninos vivendo naquelle monturo ! 48 SECCAS DO CEARA Nos tempos normaes a mortalidade de creangas 6 assombrosa, maxime em tempo de secca. A alimentagio artificial 6 a prin- pal causa de tdo grande obituario. A papa mata mais meninos do que todas as molestias juntas. CAPITULO XI O Governador do Estado, corn pena dos pequeninos e a pedido de sua mulher, man- dou fornecer leite is creangas do Campo. Antes nao tivesse tomado esse alvitre. 0 leite que se vende em Fortaleza 6 pessimo; basta di- zer que 6 de vacca cuja alimentacgo consta de residuo de carogo de algod6o e capim de plant, uma forrageira muito pobre de sub- stancias n-utritivas. Esse leite, puro, 6 m6u para a safide; imagine-se baptizado, com agua de qualquer charco, A vontade dos vendedo- res. 0 leite e o principal factor do acabamen- to das creancinhas. Os retirantes de 1915 foram mais feli- zes do que os de 1877. Naquelle tempo, a jornada foi muito mais longa e muito mais penosa. Em 1877 o retirante, se queria comer, trabalhava, como tambem a mulher, a filha e o filho menor. Nao tinham d6 do sexo fraco. Todos os dias pela manha seguiam aquellas pobres mulheres para a pedreira do Mocoripe, e de 50 SECCAS DO CEARA 1 voltavam, alto dia, trazendo uma pedra para os calpamentos que se estavam fazen- do. Aquellas infelizes, escaveiradas, tram- becando de inanigao, faziam essa viagem de duas leguas, quer estivessem gravidas ou as- sistidas. Agora, os famintos eram tratados corn mais caridade. As mulheres nao traba- Ihavam. Em uma das muitas visits que fiz ao Campo de Concentragio para vaccinar os retirantes, edificou-me a caridade da esposa do President do Estado. Admirou-me bastante a sua presence ali, porquanto nas seccas a que assist, e nao fo- ram poucas, nunca vi semelhantes figures nos abarracamentos. Por excepgdo, estava ali D. Maroquinhas Barroso, cercada de famintos, a Ihes dfs- tribuir roupa! Nao era a dadiva da vestimen- ta que me impressionava, que eu admirava; era o modo bondoso corn que aquella santa mulher vestia, ella mesma, as creancinhas, acariciando-as; a paciencia corn que suppor- tava as exigencias daquella multiddo mal educada e suja! Daquella gente sahia um fart-um que em- bebedava. D. Maroquinhas, mettida naquella m6 de maltrapilhos, com grande fortaleza de animo, nao demonstrava sentir o fedor que exhalavam aquelles corpos mal asseiados, misturado ao halito de centenas de creatures. R. THEOPHILO 5 1 Sei o mal estar que produz passar algum tempo em uma atmosphere em que, grande numero de pess6as respira. Uma feita a po- pulagdo de Fortaleza alarmou-se com um caso de variola na rua Senador Pompeu. Pro- curam-me e queriam ser vaccinados todos e a um tempo. Vi-me afogado em uma onda de c6rca de quatrocentas pess6as. Trabalhei quatro horas. Parei de cansado. Sentia um desfallecimento aborrecido. Ardiam-me as mucosas da bocca, das fos- sas nasaes, do pharynge, queimadas pelo ha- lito daquella multidao. Como me senti pequeno deante daquella mulher abnegada Percorri o abarracamen- to, por4m me sentindo mal, tapando o nariz, doudo por sahir daquella esterqueira humana. Tenho a idiosyncrasia das multid6es. Por isso e tambem temendo ser atacado pelos mi- crobios maleficos que por ali pululavam, es- tabeleci o meu posto de vaccinago em frente ao portdo do abarracamento, A sombra de um cajueiro. Ali estava menos sujeito ao con- tagio das molestias. Se eu apanhasse uma do- enga e della me acabasse, seria para mim uma grande decepgoo! Nao era morrer, era morrer no comeco- de uma batalha, para a qual eu vinha reu- nindo forgas hA dezesete annos, tantos fazem 52 SECCAS DO CEARA que abri o vaccinogenio e prometti extermi- nar a variola em Fortaleza. O meu ideal era assistir a uma secca sem variola. Morrendo, quem sabe se isso te- ria acontecido ? Vi final realizado o meu sonho. A secca seguia o seu curso, deslocando a populacao sertaneja. Cada trem que che- gava de Iguati despejava em Fortaleza cen- tenas de retirantes. Naquella cidade viviam esmolando mi- lhares de famintos. Iguatfi era o ponto obri- gado da emigracgo, visto ser a estacgo que demora no coracdo do Estado, o ponto ter- minal, naquella epoca, da Estrada de Ferro de Baturit6. A noticia da distribuicgo de soccorros na capital accelerou mais o 6xodo do interior para Fortaleza. 0 cearense, pelo facto das repetidas sec- cas, tern um pendor especial para esmolar. Nao sei como um povo que cresceu pedindo esmolas, tenha as vezes actos que o nobili- tam, actos que o collocam ao nivel dos mais dignos do mundo. Em uma de minhas idas ao abarraca- mento, encontrei uma mulher acompanhada de sete filhos pequenos a caminho do campo. Perguntei-lhe de onde vinha e porque ti- nha deixado a sua terra. R. THEOPHILO 53 Disse-me ser de Quixadh, que ia vivendo la soffrivelmente, por6m Ihe haviam dito que aqui o Governo dava muito comer a pobreza, muita roupa, leite para as creangas, que de noite accendiam uma luminaria no abarraca- mento, ficando elle que nem o sol. Por isso ella tinha vindo para melhorar de sorte. CAPITULO XII Tudo correu regularmente no Campo at6 quasi o fim de 1915. Os microbios pathogenos foram prolife- rando naquella esterqueira humana, e a mor- te comegou a sua tarefa pelas creancas. A emigracao do sertio para o litoral en- grossava todos os dias, e a de Fortaleza para o norte e sul da Republica nio esbarrava. Eu havia sido inimigo da emigracao e tdo inimigo, que escrevi um livro-O Paruara -,no qual combatia a emigracgo como uma grande desgraca. Naquelle tempo eu era ainda um crente e tinha a infantilidade de pensar que poderiamos ter governor que to- massem a serio o problema das seccas. Mudei de pensar em vista dos factos. As medidas tomadas pelo \Presid'ente da Republica, atW agora, tem sido tardias e incompletas. Se em Marco, quando o Presidente do Estado declarou a secca officialmente, o Go- verno da Republica tivesse mandado pro- longar as estradas de ferro, construir aqu- 56 SECCAS DO CEARA des, estradas de rodagem, conservando as- sim a populagdo domiciliada, os sertanejos nao se teriam deslocado, ter-se-iam poupa- do innumeras vidas e muito dinheiro a Na- gao. Se nas obras iniciadas fossem emprega- dos todos os famintos que se apresentavam pedindo scccorro, ter-se-ia evitado o 6xodo e a morte pela fome. A desidia corn que o Governo Federal agia abrindo credits dava a entender que elle nao acreditava muito na intimidade do mal que flagelava o Ceara. Os credits, al6m de insufficientes, chegavam sempre tarde, tanto que de algumas obras por mais de uma vez diminuiram o pessoal; outras foram sus- pensas. Houve engenheiro constructor que para fazer o service se prolongar admittia uma duzia de. operarios, como affirmou pela im- prensa o integro juiz de direito de Granja, Dr. Abner de Vascon.cellos. 0 ministry Calogeras, a exemplo do an- tigo ministry Murtinho da secca de 1900, no Governo de Campos Salles, ia pondo obsta- culos a tudo que se prendia A assistencia pu- blica no Ceara e s6 naio acabou a secca por um decreto devido a solicitude da bancada cearense, visto nao terms mais um home como D. Pedro II para dizer: "Quando o Thesouro nao tiver mais dinheiro para soc- R. THEOPHILO 57 correr as victims da secca, eu empenharei as joias da cor6a". Registo esses factos censurando-os, mas estou convencido de que os accusados nao dardo a minima importancia a publicidade de suas faltas. Cumpro o meu dever deixan- do aos vindouros, ao menos como curiosida- de, a noticia dessas miserias. O trabalho que davam ao faminto era reduzido. No prolongamento da Estrada de "Ferro, de Baturit6 o ministry deu ordem para redu- zir o pessoal, despedindo trezentos opera- rios. A bancada cearense interveio corn ener- gia, e a ordem do ministry foi suspense. Des- pedir operarios, quando Iguati, na visinhan- ca do prolongamento, regorgitava de retiran- tes e a populacdo daquella cidade, ji exhaus- ta de recursos, os nao podia mais soccorrer era uma perversidade. A crise medonha que nos assoberba 6 devida ao Governo Federal, que nao cumpre o seu dever. Elle a teria evitado se em tem- po tivesse cumprido o que determine a Cons- tituigdo da Republica. Se a primeira media tomada fosse o prolongamento das Estradas de Ferro de Baturit6 e Sobral, e nao o pro- longamento de 10 ou de 20 kilometros, mas. de toda a linha estudada, o Cear6 nao teria. soffrido o que soffreu. 58 SECCAS DO CEARA Fortaleza, Se tivessem mandado conti- nuar os trabalhos da Estrada de Ferro de Soure, nao teria tido uma populago adven- ticia de cerca de vinte mil almas e nao teria na cidade morrido tanta gente de fome e de molestias. Morrer de fome nao 6 s6 ser pri- vado o individuo do alimento por muitos dias, 6 a creature levar semanas, mezes, pas- sando mal, alimentando-se de migalhas, gas- tando as reserves do organismo, enfraque- cendo as resistencias delle, atW se inanir de todo P morrer . . CAPITULO XIII Em Fortaleza, penso, nao morreu pes- soa alguma de fome aguda; por6m de fome chronic, um sem numero. Na capital nao existe a miseria exage- rada que noticiam os jornaes do Rio. Dizer que em Fortalez'a raras sdo as pessoas que .nao estao a morrer de fome 6 uma inverdade. 0 flagelo nio tem a proporgdo que Ihe querem dar. E' um ripiquete de secca, no qual as chuvas foram tao bem distribuidas no littoral durante a estacdo invernosa, que 509 mills. deram para crear legumes, cereaes e man- dioca. A classes que mais soffre em Fortaleza e a que nao se v&, 6 a pobreza envergonhada. Estes vencidos da vida, alguns que foram abastados, morrem de fome e nao sahem a rua pedindo esmolas. Toda a collectividade tem um certo nu- mero de parasitas, que vivem das sobras de suas mesas. 60 SECCAS DO CEARA 14/1/1/1/VA VV WW1/LVVV^/LIAAW1VVVVkA1/WWWWWL1VV 0 numero desses desclassificados au- gmenta extraordinariamente durante as sec- cas. 0 flagelo de 77 deixou-nos milhares de invalidos que se reuniram A massa de mendi- gos da nossa capital. Nos tempos normaes, 6 mais abundante o sobejo de nossas mesas, o qual nas seccas 6 minguado; e dahi a maior miseria dos que vivem delle. A' populacdo de Fortaleza nao faltou servico. Fizeram-se diversas obras com o dinhei- ro que diversos Estados mandaram para os retirantes. Nao ficAmos tdo desamparados como em 1900. Agora os nossos irmaos se apiedavam mais de nossa desgraca. Concorreu muito para isso a viagem que o nosso virtuoso bispo D. Manuel da Sil- va Gomes fez ao sul da Republica e a falta de bragos com que lutavam os Estados do Sul, por causa da guerra da Europa. D. Manuel pintou com c6res vivas o es- tado angustioso em que se achava o Ceara. Ouviram-no, acreditaram em suas informa- g6es e nos soccorreram largamente, especial- mente S. Paulo, o mais rico de nossos irmaos. Essas esmolas nos serviram muito, mas eram esmolas que, embora dadas de uma a outra collectividade, sempre humilham. R. THEOPHILO 61 Quando os governor cumprirem os seus deveres, dando-nos meios de resistencia con- tra as seccas, nao precisaremos mais viver de mdos estiradas .A caridade dos que sao mais felizes do que n6s, aos quaes a natureza deu melhores terras e melhores climas. A lucta eterna que sustentamos contra a inclemencia do ceo, nos enrijou o corpo, nos deu tamanha resistencia organic, que nao se encontra em habitante algum dos ou- tros Estados da Republica. Qual o brasileiro que, nao sendo cearense, trabalha um dia in- teiro no campo, tendo tornado como alimen- to, ao acordar, uma chicara de caf6 com al- guns punhados de farinha de mandioca? Qual o sulista que trabalha A chuva ho- ras inteiras, sem abrigar-se? A' tarde quando elle volta A c-,sa e que vai almogar e jantar. E o que? Apenas feijao e farinha de mandioca. A care e s6mente para os domingos. CAPITULO XIV O povoamento do Amazonas s6 podia ter sido feito, como foi, pelo caboclo cearen- se, cujo organismo resistia as molestias daquella insalubre regiao e cujo espirito, im- pregnado de grossseiro fatalismo era indif- ferente 6s constantes e numerosas perdas de vida, porque estava convencido de que o home tern fixa a data da sua morte. Quando aqui se exproba a ida delles para tdo mortifera terra, responded Tan- to se more aqui como U1; chegando o dia, e aqui ou ali. O Sr. D. Manuel aproveitou muito bem as esmolas que Ihe deram para os famintos. Parte dellas foram applicadas em diversos servigos na capital e parte em soccorrer os que nao podiam trabalhar. Da distribuigio aos invalidos se encar- regou a director do Collegio da Immacula- da ConceigAo, irma Gagn6, santa mulher, que vive entire n6s ha meio seculo e que no Ceara, dirigindo uma casa de educado, prestou assim os melhores servigos. |